quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Trevas

figado

Inspiração zero, sensação ruim, teclas intocadas. Quarenta minutos olhando para a página vazia do Word. O cursor piscando irritantemente. Ouço um clamor embalado em timbres metalizados, robóticos:

—Preencha-me, busque ideias em portais de notícias, procure nesta cachola desmemoriada alguma reminiscência digna de nota. Se vira, cara, você tem compromisso. O pessoal do jornal não aguenta mais seus atrasos.

—Então... o UOL fala da corrida presidencial, da crise no Palmeiras, da taxa de desemprego e das decapitações no Oriente Médio.

—Não, acho que não. Estes temas já foram cantados e bisados por gente muito mais qualificada que um cronista provinciano. Acho que a coisa tem que ter uma pegada mais exótica.

—Ontem saiu na Folha sobre uma corrente na gastronomia que usa esperma humano nas receitas. Excêntrico, não?

—Escatológico demais. Não é por aí. Muita apelação. O mote pode até ser bizarro, mas sem agredir. Porra no pudim esbofeteia o leitor médio.

—Tem aquela reportagem do jornalista que foi contar a história de uma produtora pornô e atuou num dos filmes.

—Muito sensacionalista! E tem mais, a história é dele, não é sua. Até caberia se você também fizesse, narrando em primeira pessoa.

—Não dá pra mim. Até pensei, mas a confusão em casa seria grande. A patroa não entenderia a sacanagem fake que, diga-se, nem é tão fake.

—Pensando bem, taí um gancho. Enfiar-se numa atividade cotidiana que não é a sua e escrever contando a experiência. De novo, insisto na narrativa em primeira pessoa.

—Frentista de posto de gasolina, garçom, atendente de call center, vendedor de seguro...

—Sei não, sem tempero, sem sal nem açúcar. Tem que ser um troço mais polêmico, apimentado, uma coisa tipo stripper num clube de mulheres...

—Pô, meu, já falei que é rolo pro meu lado. Minha mulher é esquentada e isso não rola. E tem outra: que louco vai contratar como stripper um escriba sem ginga e dotado de uma pança descomunal?

—Verdade. Outro palpite: é pública e notória sua incivilidade à mesa. Todo mundo sabe que você mergulha em incursões calóricas nada comedidas. Passe uma semana num spa e conte sobre as privações em tons melodramáticos.

—Não dá tempo. Tenho duas horas para enviar o texto.

—Invente. Ficção com muito fundo de verdade.

—Pensar na ingestão de soja, rúcula, farelo de aveia e tofu castra mais a minha já escassa capacidade criativa. Tô fora. Spa e abdominais, nem na imaginação.

—O ódio, o ódio é estimulante. Pense em algo ou alguém que você abomine. Palavras amargas rendem boas crônicas. Sai até humor daí.

—Escute isto, então: “Levantei uma bandeira reprimida quando gritei minha aversão total e absoluta ao bife de fígado. Multidões nos cinco continentes odeiam bife de fígado. As manifestações só não ocorreram até agora porque faltava quem desse o primeiro brado contra estes detestáveis filés hepáticos. Eu sou o líder, eu estou na cabeça do movimento histórico que vai abolir de todas as mesas a glândula intragável...”.

—Não pare, toque em frente, em primeira pessoa, a toada tá boa e a carne é realmente ruim. Vai, insiste, divague, remoa a cólera que a crônica vai sair. Agite lá no Twitter, crie expectativa, arrebanhe seguidores para a causa, crave a hashtag #odeiofígado. Lá na frente, você mistura com soja, rúcula, farelo de aveia e tofu. Potencialize o rancor. Será antológico!

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A retratista intrépida

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A fotógrafa, destemida, é destas que gostam de captar imagens étnicas e/ou de paisagens marcantes em regiões remotas do planeta.

Como o cascalho anda curto para seus rompantes de sebastiânicas salgadices, as expedições ficam restritas aos arredores da província macaúbica.

Uma câmera na mão, um insight, charanga na estrada e lá foi ela atrás de retratos exóticos nas bordas da trilha Sanja-Jardim (Santo Antônio do), onde tem —ou tinha— um acampamento cigano.

A coisa estava um tanto calma, quase silenciosa, enquanto a corajosa zanzava entre as barracas admirando o brilho das panelas areadas. Pela tradição, a luminância há que ser intensa nos utensílios metálicos do povo zíngaro.

Seguindo zumbidos de conversas, ela avistou pouco mais de meia dúzia de crianças e jovens mulheres.

Aproximou-se. O breve “oi” foi seguido de cliques frenéticos com a lente focada nos gitanos. A calmaria acabou ali. Uma cigana irada pisou firme, rodou o vestido vermelho-sangue e avisou-a de forma rude que fotos deles só seriam permitidas com a autorização e a presença do líder do clã. Mais: o chefão havia saído, sem previsão de retorno e, por isso, as imagens colhidas deveriam ser imediatamente deletadas.

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A visão de peixeiras nada nanicas dissipou qualquer intento argumentativo na atrevida Josi —sim, senhores, a cara-metade deste temente cronista é a protagonista da crônica.

Os ânimos arrefeceram à medida que os registros, um a um, iam sendo apagados sob a atenta observação da bravinha de sorriso dourado.

Pedidos de desculpas e uma saída —eu diria fuga—, rapidinha, revelaram um arremedo de receio na arrojada garimpeira de instantâneos não convencionais.

Jururu com a aventura infrutífera, ela logo percebeu que as adjacências ofereciam gente interessante e mais pacífica para o êxito do projeto Regional Geographic.

E assim foi, da ciganada para a tijolada, da gitanaria para as olarias.

Com as belas fotos que ilustram esta publicação, o escriba homenageia a mulher que lhe atura cotidianamente e a sofrida e gentil plebe que, literalmente, amassa o barro para sobreviver.

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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Nonô e Berê

superman

Recém-casados, Antenor e Berenice voltaram da lua de mel exaustos. Nem tanto pelas fogosas recreações carnais, mas muito pela estrada esburacada e sinuosa que a Belina 1987 enfrentou sem muito vigor.

O apartamento financiado cheira tinta fresca. Os presentes estão esparramados no chão da sala.

—Berê, panela de pressão é muito útil, mas a sua tia Izildinha é uma muquirana. Montada na gaita como ela tá, poderia abrir bem mais a mão e brindar a sobrinha com algum cacareco de mais valor. Tipo uma TV daquelas grandonas, pra eu assistir aos jogos do Curíntia.

—Nonô, fala nada não, peralá, o seu primo Castor, com um monte de casa de aluguel, podre de rico, e me vem com esse joguinho americano chinfrim. Essa coisa tá tão demodé quanto a sua Belina.

—Alto lá, não fala assim da minha Belina, senão eu falo da sua Mobilete, que vive engasgada.

—Alto lá, digo eu, deixei de comprar uma moto maior pra ajudar você comprar aquela mesa de pebolim que nem cabe aqui no apartamento. Aliás, coisa estranha um marmanjão desse querer mesa de pebolim.

Antenor faz biquinho e puxa Berenice pela cintura soltando uns murmúrios no dialeto “bebê aprendendo a falar”:

—Ah Beiezinha, num vamo bigá não, agóia nói tamo zuntinho, vamo ficá di bem.

Berenice é uma mulher turrona, mas o idioma “neném” derrete sua alma renitente:

—Ah Nhonhozinho, páia vai, assim eu fico toda arrepiada!

Amassos e mãos bobas param quando Berê bota os olhos numa caixa embalada com motivos infantis:

—Ué, que será isso? Parece presente de criança! Deixa eu ver o cartão.

Antenor fica apreensivo, calado, e Berenice segue espantada:

—Quem será esse Time Warner que mandou o presente? Sabe quem é Nonô?

Ela estranha a sisudez do marido e cutuca:

—Diga, homem de Deus! Desembucha!

—Então... [longa pausa e coçada na cabeça] preciso conversar com você sobre isso...

—Fala logo, tô ficando nervosa.

Ela abre o pacote estraçalhando papel e caixa:

—Quê isso, Deus do céu, uma fantasia do Superman!

Mão no queixo e muito circunspecto, Antenor responde compassadamente:

—Senta, Berê, senta... [ele espera ela sentar e lhe serve um copo d’água, antes de prosseguir] Berê, eu sou o Super-Homem. Isso não é fantasia, é minha roupa de trabalho. Antes do nosso casamento, eu liguei pra meu Chefe e falei que um homem casado não poderia sair por aí salvando a humanidade com uma roupa velha e uma capa desbotada. Na verdade, tentei até mudar um pouco o estilo. Não me agrada muito essa sunga vermelha sobre a roupa, mas Ele não concordou. Eu até entendo, tradição, coisa e tal...

Berenice empalideceu e sua voz mal saía:

—E o emprego no escritório de contabilidade do seu tio?

—Tudo fachada. Eu estou no mundo pra lutar contra as forças do Mal.

—E o salário, é bom?

—Já foi melhor, mas dá pra ter uma vidinha boa, sem muito luxo. Tô tentando pedir um adicional de insalubridade. Pego cada bucha de malfeitor em cada beco imundo.

—Ah Nonô, tudo bem, o que importa é estar empregado. Todo trabalho tem a sua dignidade.

—Tem outra coisa muito importante que eu tenho pra te dizer. É sobre a minha roupa de trabalho: não usar amaciante e secar sempre na sombra. E quando for passar, nunca passe o ferro quente sobre o S.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Paulo Henrique

margarina

Sujeito bacana esse Paulo Henrique. Um homem que os cronistas de antanho rotulariam como “bem posto na vida”.

É chefe de uma família que os escribas de hoje carimbariam como “família comercial de margarina”. Casado com Maria Alice há mais de década, pai de Ana Luísa e João Fernando, mora com muito conforto num condomínio fechado.

É empresário de sucesso: controla  uma agência de publicidade e uma gráfica que não param de crescer.

Religiosamente, uma vez por ano, leva a família para os parques de Walt Disney. Os filhos se acabam no Magic Kingdom e no Epcot Center, e a esposa se acaba em compras nos malls e outlets da Flórida. Também não deixa de fazer uma viagem só com Maria Alice, sempre no mês do aniversário de casamento deles —outubro— e habitualmente para destinos românticos. No ano passado, foi Paris e Saint-Paul-de-Vence, neste, será Veneza e Firenze.

Católico fervoroso, assiste às missas dominicais na igrejinha de São Bom Jesus. Adora as homílias do padre Herculano e contribui com generosidade para as obras sociais da paróquia. Sujeito bacana esse Paulo Henrique.

Valoriza muito a educação. Frequentou os melhores —e mais caros— colégios e se graduou em Administração de Empresas nos EUA —na Universidade da Pensilvânia. Pela vontade dele, Ana Luísa e João Fernando vão trilhar os mesmos passos acadêmicos que os seus.

Paulo Henrique é muito preocupado com o bem-estar dos colaboradores. As empresas pagam salários acima do mercado, bancam planos de saúde completos e a cesta básica não tem nada de básica. Nas confraternizações de final de ano, todos os contratados são presenteados sem economia. Para agradar sua equipe, ele não olha para os cifrões. Sujeito bacana esse Paulo Henrique.

Já foi um apaixonado por SUVs, aqueles veículos utilitários lindões, grandalhões e beberrões. Antenado com as questões ambientais, hoje, ele e a esposa dirigem carros menores, ecologicamente corretos. Sujeito bacana esse Paulo Henrique.

Engajado, combatente nos bons combates, Paulo Henrique participa ativamente de vários conselhos municipais que discutem saúde, segurança, educação e infraestrutura urbana da comunidade onde vive. Sujeito bacana esse Paulo Henrique.

Torcedor fanático do Brooklyn Football Club, Paulo Henrique não perde nenhum jogo do time. Vai ao estádio quando o cotejo é em casa e gruda no pay-per-view da TV quando o BFC atua fora dos seus domínios.

Paulo Henrique, sem motivo aparente, vocifera insultos racistas aos negros das equipes adversárias. Quando erram jogadas, também os atletas negros do BFC são alvos das hostilidades discriminatórias de Paulo Henrique.

A casa enorme de Paulo Henrique tem muitos empregados. Faxineira, cozinheira, jardineiro e limpador de piscina. Paulo Henrique não admite nenhum negro para estas funções.

O grupo empresarial de Paulo Henrique emprega mais de 80 pessoas. Nenhuma é negra. Paulo Henrique acha que os negros não têm aptidão para o trabalho.

No seu meio social, Paulo Henrique é exemplo de pai de família e homem bem sucedido nos negócios. A embalagem vistosa mascara um cidadão de convicções abjetas, doutrinário de segregações raciais. Sujeito escroto esse Paulo Henrique.

Um pulha, definitivamente, Paulo Henrique NÃO é um sujeito bacana.

*imagens meramente ilustrativas

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