quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A casa da Vovó Elna

 

A sala da Vovó Elna

Como os salmões da trama, fui capturado pela série “Ilha de Peixe Grande”, na Netflix. Gravados na Noruega, os seis episódios, bem produzidos, contam a história da disputa entre duas famílias poderosas pelo controle da indústria do famoso peixe de carne alaranjada. O atraente enredo é ambientado na fictícia Ilha de Brima. As locações escolhidas destacam lindas paisagens costeiras, a atmosfera da piscicultura e pequenas vilas que retratam o estilo de vida local.


Uma rápida curiosidade sobre o salmão norueguês, pescado nas águas do Atlântico. Na década de 1980, o governo do país nórdico implantou uma estratégia de marketing ousada chamada “Project Japan”. A iniciativa almejava introduzir o peixe no sushi japonês. Resistentes culturalmente, os nipônicos rechaçaram inicialmente a investida dos noruegueses. O salmão não era tradicionalmente usado nos sushis/sashimis do Sol Nascente. Com persistência e um oceano de dinheiro, a Noruega conseguiu cativar os japas, demonstrando as práticas rigorosas de sua aquicultura. Pesaram também, nessa conquista, argumentos gastronômicos: a cor vibrante e o sabor suave do salmão. Convenceram o Japão e o mundo, mas não me dobraram. Só troco o atum do meu sushi por prego.


Ver a Noruega na TV reavivou meus laços afetivos com essa terra que tem outra celebridade em seus mares: o bacalhau. Meu filho, pelo intercâmbio do Rotary, viveu lá por doze meses, entre 2007 e 2008. Foi acolhido no período por três famílias. Em junho de 2010, fomos, eu e Josi, conhecer o país na companhia do Laurinho. Aquele fim de primavera foi inesquecível na Escandinávia.


Laurinho morou em Lillehammer e arredores. Nossa base foi no Centro da cidade, no apartamento do saudoso Anton Beck. A localidade, de pouco mais de 25 mil habitantes, foi sede dos Jogos Olímpicos de Inverno em 1994. Cercada por montanhas e pistas de esqui de primeira linha, às margens do lago Mjøsa, Lillehammer, ao mesmo tempo, pulsa na emoção dos esportes de neve e relaxa na tranquilidade de um vilarejo setentrional. Ali, entre idas e vindas turísticas, passei dias quase como um nativo: era até reconhecido pelos funcionários do Kiwi, um popular supermercado dos boreais.


Em Oslo, a capital, boquiabertos ficamos ante as esculturas monumentais do Parque Vigeland, caminhamos no teto moderno da Ópera Nacional e até “ouvimos” o icônico “O Grito” de Edvard Munch. Aquela expressão de angústia do quadro até hoje ecoa nas profundezas da minha alma.


Impossível ficar imune àquelas grandiosidades naturais em que formações verticais mergulham em águas límpidas que espelham o céu: os fiordes. Impossível ficar imune à inacreditável arquitetura curva da Storseisundbrua, a ponte mais incrível do planeta. Impossível ficar imune à justiça social e ao bem-estar geral proporcionados pela riqueza petrolífera.


Gostei muito da vivência norueguesa como turista, mas foi o laço terno com clãs locais que nos levou a uma experiência única em Fåvang: a casa da Vovó Elna, uma pequena propriedade rural onde o tempo parecia desacelerar. Entre paredes rústicas de madeira, ela nos brindou com waffles dourados, fresquinhos, acompanhados de mel e geleia feita de framboesas do seu pomar. Ali, naquele recanto que abraçava com hospitalidade e simplicidade, sentimos o afeto genuíno que turista comum jamais vai sentir.


Vovó Elna e seus inesquecíveis waffles

domingo, 3 de novembro de 2024

Três Batalhas: montanha, vinho e arte


 Um passeio pelas altitudes do meu quintal geográfico e afetivo num sábado de clima pouco amigável. Agradável, ao contrário do céu plúmbeo, foi o encontro com os amigos emoldurado pela mais cinematográfica das paisagens deste torrão. Da prosa solta em volta da mesa generosa, das afinidades, das bençãos de Bacco, dos efeitos das taças, enfim, desse caldeirão de prazeres veio a luz para a crônica que segue.

Geraldo Dezena, natural de Águas da Prata, e Angela Bonfante, de São João da Boa Vista, uniram suas existências em uma caminhada marcada tanto pela dedicação profissional quanto pela valorização das culturas locais onde viveram. Seus destinos se cruzaram no Banco do Brasil, onde Geraldo trilhou uma carreira de sucesso, ascendendo a postos importantes, como superintendente estadual na Paraíba e Bahia, até alcançar a vice-presidência de tecnologia da instituição. Angela, por sua vez, levou para a vida de Geraldo sensibilidade, talento e energia criativa como artista plástica inquieta que é. Formaram uma família com três filhos e, na estrada, aproveitaram a vivência nômade como bancários em aprendizado, estímulos e conquistas.

Após a aposentadoria, no período da pandemia, decidiram consolidar ainda mais suas raízes, adquirindo uma pequena gleba nas montanhas de Águas da Prata. Ali, na plenitude da Serra da Mantiqueira, cercados pelo verde abundante, refundaram aquele naco de chão como Sítio Mirante Azul, um refúgio de paz e inspiração para novos projetos. Um deles —nascido do hábito de Angela de fermentar e engarrafar safras domésticas—, é a produção de vinhos sob o rótulo “Três Batalhas”, uma homenagem à Revolução Constitucionalista de 1932 —na qual a região, situada na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, foi palco de intensos combates—, bem como aos antepassados italianos do casal e à tradição vinícola de seus clãs.

Com devoção e pesquisa, Geraldo e Angela usam a técnica da poda de inverno (ou poda invertida) para produzir néctares Syrah e Sauvignon Blanc, elaborados a partir das frutas colhidas no próprio domínio serrano. O solo vulcânico da região, rico em minerais e memórias, confere à bebida características singulares, que refletem tanto a riqueza e a alma da terra, o chamado terroir, quanto o empenho e a biografia de seus produtores. No Sítio Mirante Azul, eles não cultivam apenas uvas, mas também perpetuam o legado de seus ancestrais e a paixão pela lida no campo. Assim, a história se renova, e uma nova geração de viticultores emerge, juntando passado e presente, Itália e Brasil, trabalho árduo e poesia.

E falando em poesia, é necessário reproduzir a bela obra de autoria de Paulo Tó, compositor maior e filho do meio dos neo-vinhateiros, que está gravada nas garrafas da marca. Sintam!

Um soldado pisando com cuidado as terras
altas entre São Paulo e Minas:

“Espera, soldado, espera um momento! 

Olhe a colina, sinta o vento fresco da mata!”

E então o soldado, naquele doce delírio, estafado da guerra, 

sonhou que o vermelho,

descendo nas águas da serra,

em vez de sangue,

era vinho!

 



segunda-feira, 21 de outubro de 2024

O menino que enxergava longe

O blogueiro e Renato Paiva, empresário da Ótica Diveneza

 O trabalho começou cedo na vida do menino Renato. Ainda criança, ele corria, das ruas do Jardim dos Estados, onde cresceu, até o Mercadão Municipal, lugar em que o pai Moacyr era dono do tradicional Frangão, fornecedor de carne fresca de galináceos a restaurantes e hotéis de Poços. O moleque chegava ao velho armazém público cheio de energia para brincar entre as bancas, mas logo era incumbido de alguma pequena atividade da labuta penosa do entreposto de penosos do seu Moacyr. Testemunhando e admirando o suor do genitor, Renato aprendeu ali a importância da dura faina e a arte de bem-servir a freguesia.

Aos doze anos, ele foi colocado pelo pai para laborar numa serralheria de janelas de alumínio. “Não era brincadeira, eu trabalhava mesmo, cumpria horários, cuidava das rotinas e tudo. Foi uma escola e tanto”. Um pouco adiante, o viés empreendedor de Renato foi ficando cada vez mais nítido. Ele custeou seu ensino médio instalando alarmes residenciais.

Ingressou no ramo que ditaria seu rumo empresarial em 1995. Na Ótica Enterprise, do expert Luiz Reginaldo, Renato se apaixonou pelo ofício que exige ciência e profundo conhecimento técnico. Mais do que isso, demanda sensibilidade e vocação para lidar com pessoas, sejam elas parceiras, colaboradoras ou clientes.

A rica e transformadora experiência na Enterprise empurrou-o ao risco do voo solo no comércio. Em julho de 1998, a Diveneza abria as portas para mudar para sempre o negócio de óculos em Poços de Caldas. “No início, eu chegava às sete da manhã para estudar física óptica e gestão comercial”, conta Renato. Com bagagem e motivação, o jovem empresário foi gradativamente implantando seus conceitos e crenças no estabelecimento. Entre tantos métodos, ele instiga os funcionários a serem participantes e críticos do processo como um todo, e não somente meros executores de tarefas. Uma espécie de autogestão, eu diria.

Nos bastidores, atrás da área de vendas, há uma movimentação intensa e contínua de capacitação profissional, pesquisa, compras de novos produtos, prospecção de tendências, treinamento tecnológico, marketing e suporte ao consumidor.

Este cronista míope, freguês Diveneza desde 2019, atesta o excepcional conjunto da obra construído pelo obstinado Renato. Na minha última visita imperativa à loja (depois que meus óculos foram esmigalhados por um carro de polícia na Sicília), fui apresentado à “senhora” Visioffice, uma máquina ultramoderna que escaneia o rosto do cliente, proporcionando precisão nas medidas e uma produção de lentes personalizadíssimas, adequadas à anatomia de cada um. Só faltou ela me dar “boa tarde”. Talvez ela tenha até dado, eu é que não entendi.

O robô é essencial para o perfeito resultado dos óculos, claro, mas verdadeiramente o que me seduz como freguês Diveneza está muito além disso: gosto do bom trato, da gentileza, do café, daquele atendimento caloroso que me remete aos antigos balcões, enfim, daquilo que só gente é capaz de fazer. Dudu Hermano, craque do time Diveneza, músico e DJ nas horas vagas, é o cara que não posso deixar de mencionar nestas linhas: ele sempre me atende e personifica tudo o que eu disse na frase anterior.

Formado em Direito, “diplomado” no varejo, filho também de dona Dirce, pai de meninas, Paola e Isadora, marido de Maria Fernanda, aos 48 de existência, Renato Paiva é, inegavelmente, um homem bem-sucedido. Quem o conhece de perto e sabe de sua trajetória, enxerga, nesse sucesso, muito daquele garoto observador que vivia no Mercadão ajudando a família na luta diária pela sobrevivência. 


O blogueiro e Dudu Hermano, craque do time Diveneza,
além de músico e DJ


PS: Conheci o personagem desta crônica num  memorável jantar de outono, no Ollivia, impecavelmente organizado pela saudosa Lurdinha Camillo. O protocolo do evento colocou-nos, eu e Josi, ao lado dele e da mulher, numa ponta da grande mesa. A prosa foi boa, afinidades afloraram e, dias depois, eu já estava explorando aquele lindo e iluminado empório do bem-enxergar na rua Prefeito Chagas. 

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Geladas influências

Attilio Junior e Letícia Brunorio, o casal Dubelato

Nascido em Buritama, ele cresceu em outra cidade de São Paulo, Monte Azul Paulista, onde o pai tinha uma sorveteria que aliviava o calor infernal do norte do estado. O comércio, na verdade, era mais do que um ponto de venda. A Dubon, esse era o nome, também fabricava e distribuía regionalmente os sorvetes do empresário Atilio José Aparecido Rossi, genitor do personagem desta crônica, Attilio Junior Rossi.

O menino, cuja infância monteazulense foi de deleites diários e ilimitados no saboroso empreendimento do clã, saiu de casa para cursar Engenharia de Alimentos na USP de Pirassununga. Na diversidade do ambiente acadêmico, Attilio conheceu e caiu de paixão pela poços-caldense Letícia Pereira Brunorio. O namoro começou em meio às aulas de Microbiologia e Tecnologia de Produtos Lácteos.

No meio do curso, Letícia se auto-exilou na França para um período de intercâmbio. Voltou trazendo na bagagem outra paixão: gelatos. Compartilhou com o namorado os aromas da viagem e o que tinha provado de bom nas gelaterias da Europa.

Diplomados, Letícia e Attilio ingressaram na trajetória profissional em multinacionais: ela, na Nestlé; ele, na Danone. Attilio, depois da temporada nos iogurtes famosos, regressou a Monte Azul para auxiliar o pai na expansão da Dubon.

Fazer gelatos, morar em Poços e casar foram determinantes vontades do casal. Attilio se inspirou no negócio do pai para em 2017, junto com Letícia, abrir na estância vulcânica a primeira loja da Dubelato. A marca é uma junção de Dubon e gelato. Attilio conta: “Quis fazer um produto diferente do que eu conhecia. O gelato é feito com ingredientes melhores, textura e cremosidade que nada têm a ver com sorvete. Estudei muito, fiz milhões de testes até chegar no resultado que vendemos hoje. Continuo aprimorando, inovando e aprendendo. Gosto do desafio de experimentar uma fruta ou uma sobremesa e transformar o sabor num gelato, obviamente sem aditivos químicos e insumos artificiais.”

Depois de sete anos da unidade inaugural, a Dubelato é um selo de qualidade consolidado na região. Entre lojas próprias e parceiras, sete fazem sucesso em Poços (4), São João da Boa Vista, Amparo e Pouso Alegre. Mais quatro serão abertas nos próximos meses.

Attilio Rossi encontrou Letícia para construir família e prosperar. A beleza da coisa está na inovação que honra a história do pai, o batalhador Atilio, que sustentou a prole enquanto o rebento se lambuzava de geladas influências que viriam moldar sua vocação e seu norte empresarial.

Attilio, permita uma provocação deste cronista glutão: que tal pensar num gelato sabor vulcão?

domingo, 15 de setembro de 2024

Almiro, o peregrino da Mantiqueira

 

Almiro Grings num trecho do Caminho da Fé
(Trilha do Avestruz, Águas da Prata, SP)

Noite agradável de semana, a pizza no Império uniu eu, Josi e Gil Sibin para uma prosa sobre viagens. Interrompi minhas dicas sicilianas ao amigo Gil quando avistei aquele personagem que admiro chegando em passos lentos na companhia da mulher, Ana. Levantei-me para reverenciá-lo e pedir uma foto. Ganhei o registro e a inspiração para esta crônica.


Gaúcho, ele nasceu no mesmo pedaço de chão que deu ao mundo Gisele Bündchen. Ilustres nomes de Horizontina, noroeste do Rio Grande do Sul, têm uma diferença de quatro décadas no registro civil. O então jovem Almiro saiu do interior para cursar Ciências Contábeis em Porto Alegre. Saiu para caminhar nas imprevisíveis veredas da existência.


O início da carreira laboral foi como auditor no universo corporativo. Em razão desse trabalho, ele aterrissa em São Paulo. Estudioso, o horizontinense logo ingressa no serviço público paulista. Em 1983, Almiro, a esposa e três filhos se estabelecem em São João da Boa Vista, onde ele assume o posto de agente fiscal de rendas da Secretaria da Fazenda estadual.


Morador de Águas da Prata desde 1999, ele foi guiado pelo planeta por sua alma mochileira e seu ímpeto caminhante. As páginas dos seus passaportes têm um bocado de carimbos: Peru, Colômbia, Bolívia, Cuba, grande parte da Europa, Tailândia, Camboja, Vietnã, entre outros.


Com o irmão, Almiro fez o mítico Caminho de Santiago de Compostela pela segunda vez em 2000. Voltou decidido a replicar a trilha peregrina no Brasil. Idealizou a rota de Águas da Prata até Aparecida. Riscou o trajeto off-road no mapa, transitou nele inúmeras vezes para aperfeiçoá-lo, pediu apoio às Prefeituras, incentivou donos de hospedagens e restaurantes de pequenas comunidades, fez ele mesmo as primeiras sinalizações do trecho, conseguiu que a Folha de São Paulo fizesse uma matéria sobre a ideia.


Visionário, Almiro Grings foi o criador do Caminho da Fé, que desde 2003 arrebanha dezenas de milhares de peregrinos anualmente, buscando uma jornada de reflexão, uma caminhada para repensar valores e fortalecer o espírito. E tudo isso emoldurado pelo cenário deslumbrante desta incrível Mantiqueira que junta São Paulo e Minas num abraço nas montanhas.


Hoje, aos 84, ele, o lendário Almiro, pode se orgulhar de um feito que melhora de fato a vida das pessoas, seja pelo bem-estar proporcionado durante o percurso introspectivo, seja pelo incremento turístico nos modestos lugarejos cruzados pelo Caminho da Fé.


A fé, sem dúvida, abre caminhos!


Estação Ferroviária de Águas da Prata, SP


Arredores da Fazenda Retiro, Águas da Prata, SP


terça-feira, 23 de julho de 2024

Bangkok, Seul, Tóquio, Pequim, São João

 

—Me indica um restaurante legal, Lauro, por favor. Comida boa.


—Você conhece o HaoChi? O melhor rango de São João, de longe.


—Não como peixe cru.


—Então você não conhece o HaoChi, eles não fazem sushi. É outra proposta de comida asiática. 


—Não gosto de nada exótico.


—Pensa num macarrão frito com legumes, carnes e um molho delicioso feito com shoyu. Já provou yakisoba? Já provou o yakisoba do HaoChi? O frango xadrez? O arroz chopsuey? O porco agridoce? O lámen?

—Será? Acho que não é minha praia, não vou arriscar.


Ah!, o conservadorismo, a resistência ao novo! O medo asfixiante que nos impede de mergulhar em sabores desconhecidos. Tudo o que foge do cardápio convencional é visto com desconfiança. Uma fobia gastronômica disfarçada de preferência alimentar. O argumento "não gosto" sinaliza uma boca (e uma mente) fechada, costurada antes mesmo das papilas sentirem a novidade.


Essa relutância se retroalimenta num ciclo vicioso. Não prova porque não conhece, e não conhece porque não prova. 


A cozinha é uma das formas mais ricas de intercâmbio cultural. Pratos de outras etnias são convites a viajar pelos aromas, a imergir na história e nos costumes de um povo, a expandir horizontes sem sequer precisar de passaporte.


Que tal ceder ao risco de descobrir que há um mundo gostoso além da fronteira estreita de nossas opções habituais? Que tal algumas vezes abrir mão do previsível mais do mesmo? Que tal, ainda que atabalhoadamente, empunhar hashis? Não gostar é do jogo, mas que tal jogar o jogo? 


Fundado em 2013, o HaoChi, inspirador desta crônica, nasceu da paixão por comida chinesa do paulistano Celso Zerbetto. Office-boy na adolescência, ele gastava grande parte do salário nos restaurantes da Liberdade. Radicado em São João da Boa Vista desde o final da década de 1970, Celso também é o criador do legendário sanduba Dona Lindona, um lanche que fez (e ainda faz) história na cena botequeira sanjoanense.


Há onze anos de portas abertas, o HaoChi é um marco da culinária asiática no interior de São Paulo. Tudo é fresco, feito na hora, preparado sob o olhar da extasiada clientela. A família Zerbetto, empreendedora incansável, persevera bravamente para ampliar o mercado, furar a bolha dos resistentes e fazer com que mais gente da aldeia caia de paixão pelas lindezas coloridas e aromáticas do maior e melhor menu étnico deste pedaço vulcânico da Mantiqueira.


🇯🇵🇰🇷🇹🇭🇨🇳🇻🇳

HaoChi Cozinha Asiática

Av. Durval Nicolau, 445

São João da Boa Vista, SP

De quarta à sábado, das 18 às 23h

19 99397-8825


sábado, 29 de junho de 2024

Casa João de Barro

 

Durante a pandemia, muitas pessoas adquiriram o bom hábito de tirar os calçados antes de entrar em suas casas. Sapateiras, então, passaram a ser utilizadas para que os sapatos ficassem nos ambientes de entrada das residências. Mirando nesse nicho de mercado, num momento de crise, o arquiteto João Paulo Reinato se associou ao pai, Mauri, serralheiro reconhecido, para fabricar as peças. Beleza e qualidade impulsionaram as vendas do produto que mesclava harmonicamente ferro e madeira.


O negócio cresceu rápido e o portfólio foi ampliado para modelos múltiplos, domésticos e comerciais, de mobiliário. O estilo ferro e madeira permaneceu como marca da João de Barro Móveis. Desse incremento, veio o inevitável showroom. Clientes, encantados com o charmoso imóvel no bucólico Bairro Alegre, onde os móveis eram exibidos, sugeriam o tempo todo: “João, por que não agregar um café a esse espaço delicioso?”. 


A família encampou a ideia e o time foi reforçado. A mãe Ana chegou para comandar a cozinha. O brother Mauri Júnior também embarcou com a esposa Taciane no empreendimento, que ganhou um novo nome: Casa João de Barro. 


Na pitoresca comunidade distante do Centro de São João da Boa Vista, a casinha avarandada, cercada por um bem-cuidado jardim, abriga mais uma preciosidade desta Mantiqueira de tantas seduções. No cardápio, há o afeto artesanal nas formas de café coado, pão de queijo, brownie, cookie e generosas tostadas. Estas, são fatias de pães de longa fermentação cobertas com shimeji e cream cheese, ovos com bacon e, escuta isso!, banana, queijo e doce de leite.


Senti, ali, uma atmosfera caseira que exala aromas que abraçam e confortam. Senti sabores servidos por um clã que trabalha junto e valoriza a simplicidade poética do Bairro Alegre.


☕️ ☕️ ☕️

Casa João de Barro

Rua Maria Esther Campos de Alvarenga, 61

Bairro Alegre, São João da Boa Vista, SP

Sábados, das 8 às 12h e das 14 às 18h

Domingos, das 8 às 12h





segunda-feira, 17 de junho de 2024

LED Beer: o prazer do cereal líquido

Brewpub LED Beer em Águas da Prata

 Conheci o empreendedor que está neste texto por acaso. Seu brewpub em Poços, na Assis Figueiredo, me acolheu numa noite fria quando eu buscava uma sarjeta pra comer os hambúrgueres da Dona Dulce. Como minha hamburgueria preferida só opera no delivery, perguntei na cervejaria vizinha se eu e Josi poderíamos ali satisfazer nossa carência burgueira. Eles foram simpáticos, generosos e nos cederam mesa e cadeiras. Sentamos, bebemos algumas cervejas, devoramos os burgers do Felipão e engatamos uma longa prosa cervejeira até descobrir que também tem LED Beer em Águas da Prata. Segue a rápida história…

Poços-caldense, apaixonado por cerveja, pesquisador incansável da bebida, o engenheiro eletricista André Dias fez do hobby um negócio. Depois de doze anos trabalhando em indústrias, ele quis experimentar a tensão de uma corrente de cereais, líquida e bem mais prazerosa.

Em 2019, a LED Beer foi criada após exaustivos testes de receitas. A vontade dele foi e continua sendo popularizar a cerveja artesanal, colocá-la nos momentos tradicionais de confraternização, em bares, eventos, reuniões de familiares e amigos etc. “Cerveja boa, Lauro, tem que ser tomada em todas as ocasiões, ela não pode ser pouco acessível”.

André ressalta seu apreço pelas grandes escolas cervejeiras, mas a tradição não impede dele imprimir seu estilo: “Gosto das cervejas alemãs, americanas, belgas, tchecas, mas quero dar um toque brasileiro às nossas. Essa diversidade de frutas e aromas do país está também nas cervejas da LED. Além das clássicas cervejas do mundo, a cultura do Brasil está nos nossos rótulos”.

Cerveja sem comida? Não rola! A LED Beer oferece em seus brewpubs de Poços e Águas da Prata um enxuto cardápio de petiscos para acompanhar os mais de quinze tipos de breja. Tem torresmo, tem fritas rústicas, tem costelinha marinada na cerveja ao molho barbecue, tem linguiça. Tem ainda dois sanduíches maravilhosos cujas carnes do recheio também são lentamente cozidas na cerveja da casa.

Em tempo: a operação é comandada por André Dias, mas William Leal está junto como investidor na empreitada cervejeira. Também engenheiro eletricista e apaixonado pelo universo das brejas, ele (ainda) não deixou a carreira corporativa. 

🍺🍺🍺

Brewpubs LED Beer


👉🏻Poços de Caldas

Rua Assis Figueiredo, 376

Terça a sábado, a partir das 16h


👉🏻Águas da Prata

Rua Cel. Ernesto de Oliveira, 11

Sexta, a partir das 18h

Sábado e domingo, a partir das 12h


André Dias, dono da LED Beer

domingo, 2 de junho de 2024

Derrota ostraordinária

Curioso, indaguei à minha mãe sobre as conchas disformes que eram exibidas no recipiente do modesto ambulante que circulava sob um sol senegalesco. “São ostras, quer provar?”. Pelo tom de voz sem muito entusiasmo da oferta, percebi que as coisinhas estranhas nada apeteciam dona Ana Maria.

Aquele típico rompante adolescente me fez aceitar. O senhor de pés descalços e pele tostada da praia agachou-se à minha frente e, com extrema destreza manuseando uma pequena faca, começou a abrir meia dúzia de moluscos. Gotas de limão e uma pitada de sal ele jogou sobre a gosminha que repousava sobre a outra metade da concha. “Deixa escorrer na boca e engole, não precisa mastigar”, ensinou o tiozinho ao jovem sentado na areia, cabelo descolorido, sem medo do novo. Fui arrebatado instantaneamente por aquele inexplicável gosto de mar, gosto de desafio, gosto de uma estrada de sabores que eu começava a trilhar. Era Peruíbe, litoral sul paulista, meados dos anos 1980.

Desde então, batizado, comungado e crismado no paladar da iguaria, algumas centenas —milhares talvez— de ostras mundo afora eu devorei. Josi, que sempre se manteve distante delas, se deixou levar pelas caipirinhas na paradisíaca Praia dos Carneiros em Pernambuco. Era a Semana Santa de 2011. Ela sucumbiu a meus apelos e experimentou… uma, duas, três, quatro… Vivaaaaaa! Naquela sexta-feira sagrada, eu consegui evangelizá-la e ganhei uma companheira “ostraordinária” de esbórnias.

Praia dos Carneiros (PE), 2011: Josi prova ostras pela primeira vez

Num outono gelado, estávamos na Grand Central em Manhattan, esperando o trem para Norwalk. Como o comboio demoraria quarenta minutos para partir, entramos num Oyster Bar na legendária estação. No meio daqueles engravatados de Wall Street, consumimos no balcão, com cerveja e Aperol, uma dúzia delas. O que me chocou não foi o preço exorbitante da porção, mas o copinho de ketchup que os norte-americanos servem como acompanhamento do molusco. Ostras com ketchup, ianques? PQP!

Grand Central Station, Nova York, outono de 2018: ostras servidas com ketchup

No ano passado, o amigo Leandro Balloni, que gozaria um feriadão retirado com a família em Cananéia, perguntou se eu queria algo de lá. Só um ser insensível não liga ostras a Cananéia. Só um ser insensível não liga ostras a amigos que também delas gostam. Nem todos são parceiros “ostraordinários” à mesa, coisa que Luisinho Galli e Ellen são. E dos bons!

Leandro, meu querido, um casal amigo estará conosco na farra “ostraordinária”. Pode me trazer doze dúzias? Não quero miséria.

—Quantas?! [o timbre vocal dele transmitia incredulidade]

—Doze dúzias, isso mesmo, cento e quarenta e quatro ostras.

Fiz um grande preparo ferramental para a gloriosa noite de vinte e dois de novembro de dois mil e vinte e três. O Mercado Livre nos muniu de faquinhas e luvas específicas para o manejo de ostras. Mesa linda, gelo e vinho branco em abundância. Arriscamos até umas gratinadas.

Ellen, Luisinho e Josi no manejo: doze dúzias de ostras numa noite de 2023

A temperatura amena na Fonte Platina, a prosa solta, o Chardonnay, a MPB na Alexa, o caldo denso do bem viver. Vai daí que no embalo irresistível do encontro, dizem alguns dos três que comigo estavam, fui o autor do delito contra cinquenta delas. Prefiro contabilizar em dúzias e dizer que comi quatro, é menos agressivo, mais civilizado.

Nalgum momento daquela reunião, algo começou a se rebelar nas minhas entranhas. Silenciei, sofri quieto. Interações monossilábicas e visitas sucessivas ao banheiro entregaram aos companheiros meu lastimável quadro gastro-intestinal. Capitulei e tombei vergonhosamente nas quarenta e oito horas seguintes. A quantidade ingerida, alguma estragada no meio das boas, uma intolerância tardiamente adquirida? Não consegui identificar até agora o motivo de minha fragorosa e triste derrota.

Em janeiro deste 2024, voltei a Peruíbe. Relutante, no incrível restaurante Pau do Índio, cedi ao instinto e abocanhei apenas uma. Uma mísera ostra! Caí novamente, sob os idênticos estrondos abdominais de meses antes. Assumi minha humana fragilidade ante o molusco e, na mesma Peruíbe onde a paixão brotou, fiz votos de definitiva abstinência do prazer que me deleitou por quatro décadas. 


Restaurante Pau do Índio, Peruíbe, SP, janeiro de 2024: minha derradeira experiência com ostras

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Youssef e Linh


Filhos de imigrantes, Youssef e Linh trabalham no mesmo edifício de escritórios na rua Vodičkova. Nunca conversaram, o contato é só visual durante o café. Eventualmente se encontram no almoço na barraca de kebab da rua Štěpánská. Um balançar tímido de cabeça é o cumprimento entre eles. Gentil aceno, mas frio e distante.

Youssef começou a desenvolver sentimentos recônditos por Linh. Boca seca e batimentos acelerados ele começou a ter quando a via tomando cappuccino. Ela só toma cappuccino. Ele também.

Na noite gelada da última sexta, Youssef fez planos para se declarar e não mais passar fins de semana sozinho, lendo poesia às margens do Moldava.

Depois do expediente, ele a surpreendeu com um bouquet de tulipas rosas na estação Národní Třída. Linh gostou, claro, mas ela nada sente por ele. Pra ela, a saudação diária é meramente protocolar. Pra ele, era flerte.

Linh abraçou forte o ramalhete, talvez para inibir o abraço do pretendente, sinalizando que ali não havia espaço para outros abraços.

Youssef falou muito, ela só ouvia, constrangida, agarrada às flores, olhos ao longe. Ele avançou, arriscou um beijo. Linh virou o rosto, deu um passo atrás. O homem respeitou, disse que não ia insistir ainda que seu coração dissesse o contrário.

Ela reconheceu o cavalheirismo de Youssef e aceitou um beijo de despedida na face. Sem olhar pra trás, Linh subiu no bonde 22 rumo à parada Jana Masaryka. No coletivo, ainda enlaçada às tulipas, ela pensava em como explicar as lindas flores à namorada Kateřina.

((A cena, por mim testemunhada e furtivamente fotografada, inspirou a ficção cheia de temperos reais. A crônica foi escrita num trem entre Praga e Viena.))