domingo, 21 de junho de 2015

Poético-coentro

jaca

—Cachê pra cozinhar?

—Sim.

—Mas você é chef, cobre pelos pratos, divulgue seu trabalho.

—Sou artista. Ninguém janta no meu estúdio, as pessoas interagem com a minha arte. Elas mastigam minhas divagações. Elas engolem minhas texturas. Elas são deleitadas com meu vezo poético-coentro.

—Poético-coentro?

—Uma gastronomia que versa sobre o lirismo das sobreposições harmônicas de aromas intensos e delicados.

—Você tá de brincadeira?

—Não, não brinco com isso.

—E quanto seria o seu cachê?

—Dez mil reais por seis horas. Vocês pagam os ingredientes e dois assistentes.

—Só isso?

—Não, tem mais. Também quero um fotógrafo exclusivo. Meu Instagram precisa ser alimentado com imagens assinadas e bem editadas.

—E a coisa do TNT?

—TNT Flavor Experience. É o ato número quatro da minha performance.

—Hmmm...

—O TNT Flavor Experience consiste em pequenos estampidos no salão enquanto os comensais apreciam mousse de cajá com risoto de cupuaçu e carne de bode. O cheiro de pólvora dos explosivos será anulado com spray de jatobá.

—Qual o propósito das bombinhas fedidas?

—Respeito, cara, respeito... minha obra traz embutido um conceito de impactar. As míni-dinamites transmitem a ideia de explosão de sabores. O jatobá com seu característico odor tem a proposta de incomodar.

—O cara vai pagar uma baita grana pra se sentir incomodado?

—Sim, também. Aí entra um pouco de sexualidade não convencional na experiência do espectador. O incômodo sentido é pra despertar inclinações sadomasoquistas.

—O cara sai de casa pra jantar, vai pagar uma puta bufunfa e vai querer descobrir tendências sadomasoquistas pensando num suculento filé com fritas?

—Sim, a riqueza da humana diversidade há sempre que ser contemplada em qualquer manifestação cultural.

—E o tofu? Vai ter tofu?

—Hã? Tofu?

—Nada, esquece, tofu rima com vai tomar... tofu, melhor dizendo, rima com coquetel de umbu...

#TripAdvisor

tripadvisor-logo

Uma coisa de quinta, sem pé nem cabeça, sem graça, sem gosto. A água de 500 ml por oito dinheiros valeu cada centavo por livrar o palato daquele sabor abominável. Estomazil à mão também é altamente recomendável caso o incauto, ainda assim, se aventurar por ali.

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De que adianta o bovino ser tratado dentro dos melhores preceitos “free range” se a morte dele foi pra servir aquela carne fora do ponto. De seca já basta minha língua quando falta o Rivotril.

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E a panna cotta de frutas vermelhas? O leite era desnatado, a fruta em compota, a gelatina genérica e o creme de leite azedo. O chef pâtisser, como reprimenda, deveria ser obrigado a comer aquilo por duas semanas consecutivas. E sem nenhuma gota d’água por perto.

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Maldita obsessão pelo aumento do ticket médio. A bagaça até que agrada em alguns itens do cardápio, mas aqueles putos empurrando couvert caro, licor e sobremesa é de amargar. Garçom ou vendedor de seguro?

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Pão de queijo por seis reais? Não, cara, não. Meu espírito perdulário ainda não chegou nesse nível. Branquelo e borrachudo, além do preço exorbitante, a coisa ofendeu Minas Gerais. Tiradentes foi enforcado em vão?

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Entrada, principal, sobremesa, duas águas. Nada de vinho. A conta apontou R$ 397,50. O casal? Não, uma pessoa. Um único infeliz. Divide o valor em três prestações? Não, sinto muito. Foda-se, ladrão! Não sinto muito, sinto raiva.

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Na Vila Madalena e atrai foodies? Decorado pelo Sig Bergamin? Ketchup de goiaba e omelete sem gema? Pão de farelo de trigo da Islândia? Caipirinha sem álcool? É fato, a humanidade não deu muito certo.

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É óbvio que o cara jamais serviria comida decente. Não dá pra confiar num cozinheiro que não goste de bucho. O cara torce o nariz pra rabada? Que fique longe de qualquer cozinha.

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—O peixe tem cheiro de peixe. Cheiro e gosto. Não gosto de peixe que tenha cheiro de peixe. Acho muito forte, agride o paladar. Peixe pra mim tem que ter notas mais suaves.

—Tipo o quê?

—Tipo peito de frango. É isso, quero peixe com retrogosto galináceo.

—Coma frango, então.

—Não, mestre, você não entendeu, eu vim aqui pra comer peixe.

Walther nas alturas

céu

—Por obséquio, poderia informar-me onde estou neste momento? Vejo em demasia coisas que imagino, mas que não entendo.

—Hã?

—Confuso demais, quanta luz aqui! Esse lance de paraíso é real? Sempre fui um puta cético com essa coisa espiritual. O cenário impressiona pela perfeição, quase surreal. A beleza é muito simétrica, ortodoxa demais para a poesia concreta, cartesiana demais pra quem veio de um mundo tão deliciosamente anárquico. E você, meu caro da espécie angelical, pode me dar explicações mais abrangentes sobre essa minha nova morada? Esse conceito estético é um bocado entediante, não?

—Moço, que mal lhe pergunte: de onde está vindo?

—Acho uma questão um tanto descabida, perdoe-me pela franqueza. A confirmar-se tudo que sabemos sobre jardins celestiais e demais concepções divinas, você, seus superiores e o Superior Maior, sabem tudo sobre mim. Minha ficha mundana deve estar fácil aí, a dois cliques da sua vontade.

—Poderia simplificar as coisas, por favor?

—Lembro-me vagamente que estava deitado em casa, acometido por uma moléstia que insistia em me tirar o bom da vida. De repente, deparo-me com esse local de traços delicados, de luz abundante, de paz insuportavelmente silenciosa, de antíteses terráqueas, de paradoxos existenciais...

—Então o senhor não sabe mesmo o que aconteceu?

—Deduzo, mas sem convicção nenhuma.

[São Pedro aparece, intervém e passa ser o porta-voz das alturas]

—Walther, Walther... eu já esperava isso de uma personalidade tão inquieta, tão instintivamente contestadora...

—Pera lá, homem de Deus, literalmente, cá nesta minha entrada ainda não quero me aprofundar em dogmas religiosos, em divagações filosóficas. Ainda, que fique bem claro, mais pra frente tem muita coisa para embalar nossos colóquios.  O que quero, por enquanto, é conhecer questiúnculas mais comezinhas da minha permanência eterna aqui.

—Por exemplo?

—Existe uma segmentação por afinidade? Sendo mais específico: cantores sertanejos, pagodeiros e escritores de autoajuda frequentarão os mesmos espaços de convivência que os meus?  No refeitório: veganos, macrobióticos e outras tribos sem tempero dividirão a mesa comigo? Conflitos de idiossincrasias, resumindo.

—Warthi, pra usar o dialeto carregado da sua aldeia, aqui há uma certa uniformidade de gostos, condutas, paisagens...

—Repito o que afirmei perguntando ao anjinho: entediante, não?

—Eu não diria assim...

—Ok, podemos florear com eufemismos: ambiente de estadia infinita padronizado por parâmetros politicamente corretos, esteticamente neutros e poeticamente nulos.

—Warthi, Warthi… [gritando para o anjo] Gabriel, chama o Rui Barbosa, o João Ubaldo, o Houaiss e o Rubem Alves pra conversar com o homem… tá duro de domar o verbo rebelde dele!


PS: texto concebido em parceria com a amiga Silvia Ferrante, com quem compartilho uma saudade imensa do literato maior Walther Castelli Júnior.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Sabores e tremores

alexandra-daddario

Fim de tarde de sexta-feira e o trabalho me manda à rua para colher negócios. O mundo fora do ambiente do ganha-pão areja, desintoxica da faina rotineira. Contato com o diferente pode ser um dos melhores nutrientes da existência. Contato com gente, também.

Por curiosidade, vício e gula, estou sempre aberto a descobrir novos sabores. Já encarei sarapatel, caldo de sururu, buchada de bode, peixes estranhos e outros bichos inusitados à mesa.

No mencionado crepúsculo da semana do primeiro parágrafo, acho que exagerei na coragem pra explorações gustativas.

Visitando o carismático cliente fabricante de incensos, ele nos diz que a resina —que na verdade é o produto em si— é comestível e que é relativamente comum a sua ingestão por alguns povos do norte da África. Falou isso e colocou à nossa frente uns "petiscos" da coisa.

O colega Guerino, mais educado e menos guloso, mastigou delicadamente uma pedrinha. O lambão aqui logo mandou três das graúdas à boca. O troço é sem gosto e quase impossível de engolir. Envergonhado para cuspir, fiquei mascando aquela goma insossa que gruda implacavelmente no vão dos dentes e, depois de alguns minutos de transpiração e luta, meu estômago recebeu aquela maçaroca triturada. Recebeu, mas não acolheu bem. Terminei a sexta e iniciei o sábado com um desconforto digestivo monumental.

Feliz ficou o Guerino que me disse em mensagem privada —agora caiu o segredo, meu amigo— que o incenso teve um efeito aromático muito agradável na fragrância dos seus flatos.

Ainda padecendo de azia pelo “aperitivo” vespertino, sob coação conjugal, o cinema foi o programa da noite. San Andreas estava em cartaz e a expectativa era de uma chacoalhante diversão. Hollywood sabe fazer melhor e a Califórnia não é merecedora da obra.

O filme não tem nada de entretenimento, não conta nenhuma história e é todo tenso no pior sentido da palavra. A fantasia é exagerada e não cola. Uma das cidades mais lindas do mundo, San Francisco, é inteira destruída enquanto o protagonista —Dwayne Johnson— tenta resolver seu combalido relacionamento conjugal. Ele pilota helicóptero, avião e lancha, mas é incapaz de transmitir qualquer emoção crível. Achei ofensivo e muito deprimente mostrar a Golden Gate destroçada num pseudo exercício de possibilidades geológicas. A maior tragédia no filme é ele próprio. 9,9 na escala "ruinchter".

Rola algo digno de deleite na película? Sim, um assombro de beleza perdido no meio de tanta patacoada: Alexandra Daddario.

Maguary de caju

comida congelada

—Comida congelada!?

—É... só tenho isso.

—Esperava algo mais... um macarrãozinho feito na hora, uma saladinha fresca, um franguinho refogado, sei lá, uma comidinha com gosto de aconchego, de after sex. Esse Escondidinho da Sadia é o ó! da culinária sem graça. E também vem muito pouco, quase nada, mal dá pra um.

—Quebra um galho...

—Pois é, quebra um galho. Pra você essa noite tem um quê de quebra-galho?

—Eu disse isso?

—Não disse, mas deu a entender. Você poderia ter pensado numa coisa mais caprichada, mais romântica.

—Não gostou da minha cueca de oncinha?

—Gostei, mas não tô falando do durante, tô falando do depois. Acho que eu merecia um pouco mais de consideração. Essa gororoba de micro-ondas serve pro dia a dia, não pra uma noite especial. Ou o que a gente teve agorinha não foi especial?

—Desencana, para de pensar bobagem. Vamos tomar alguma coisa...

—Um vinho!?

—Maguary de caju, pode ser?

—Edmilson Gustavo!, você só pode estar brincando... Maguary de caju é a puta que te pariu... nem uma bebida decente você foi capaz de providenciar?

—Quem está estragando a noite é você, com esse vocabulário ofensivo.

—Vocabulário ofensivo é o que vai acontecer daqui a pouco se você não largar a porra desse videogame e não me trouxer em trinta minutos um jantar que combine com a minha pessoa.

—E o que seria um jantar que combina com a sua pessoa?

—Quer saber, seu pão duro insensível, agora eu vou apelar. Pega o cartão de crédito porque a coisa vai engrossar pro seu bolso. Vai lá no Bento’s e me traga um badejo grelhado com amêndoas e arroz negro. Também quero um risoto de pera com gorgonzola e lombo de cordeiro com geleia de hortelã. De sobremesa, ouça bem, eu quero duas, duas sobremesas: um petit gâteau e uma banana flambada com sorvete.

—E a balança?

—Que balança, Edmilson Gustavo?

—Aquela que vai quebrar depois dessa comilança toda.

—@$%&@$%&@$%&

[Em respeito aos leitores o escriba se abstém de transcrever as palavras um tanto pesadas da transtornada moça depois da infame piadinha, também pesada, do cuca fresca Edmilson Gustavo].