domingo, 21 de junho de 2015

Walther nas alturas

céu

—Por obséquio, poderia informar-me onde estou neste momento? Vejo em demasia coisas que imagino, mas que não entendo.

—Hã?

—Confuso demais, quanta luz aqui! Esse lance de paraíso é real? Sempre fui um puta cético com essa coisa espiritual. O cenário impressiona pela perfeição, quase surreal. A beleza é muito simétrica, ortodoxa demais para a poesia concreta, cartesiana demais pra quem veio de um mundo tão deliciosamente anárquico. E você, meu caro da espécie angelical, pode me dar explicações mais abrangentes sobre essa minha nova morada? Esse conceito estético é um bocado entediante, não?

—Moço, que mal lhe pergunte: de onde está vindo?

—Acho uma questão um tanto descabida, perdoe-me pela franqueza. A confirmar-se tudo que sabemos sobre jardins celestiais e demais concepções divinas, você, seus superiores e o Superior Maior, sabem tudo sobre mim. Minha ficha mundana deve estar fácil aí, a dois cliques da sua vontade.

—Poderia simplificar as coisas, por favor?

—Lembro-me vagamente que estava deitado em casa, acometido por uma moléstia que insistia em me tirar o bom da vida. De repente, deparo-me com esse local de traços delicados, de luz abundante, de paz insuportavelmente silenciosa, de antíteses terráqueas, de paradoxos existenciais...

—Então o senhor não sabe mesmo o que aconteceu?

—Deduzo, mas sem convicção nenhuma.

[São Pedro aparece, intervém e passa ser o porta-voz das alturas]

—Walther, Walther... eu já esperava isso de uma personalidade tão inquieta, tão instintivamente contestadora...

—Pera lá, homem de Deus, literalmente, cá nesta minha entrada ainda não quero me aprofundar em dogmas religiosos, em divagações filosóficas. Ainda, que fique bem claro, mais pra frente tem muita coisa para embalar nossos colóquios.  O que quero, por enquanto, é conhecer questiúnculas mais comezinhas da minha permanência eterna aqui.

—Por exemplo?

—Existe uma segmentação por afinidade? Sendo mais específico: cantores sertanejos, pagodeiros e escritores de autoajuda frequentarão os mesmos espaços de convivência que os meus?  No refeitório: veganos, macrobióticos e outras tribos sem tempero dividirão a mesa comigo? Conflitos de idiossincrasias, resumindo.

—Warthi, pra usar o dialeto carregado da sua aldeia, aqui há uma certa uniformidade de gostos, condutas, paisagens...

—Repito o que afirmei perguntando ao anjinho: entediante, não?

—Eu não diria assim...

—Ok, podemos florear com eufemismos: ambiente de estadia infinita padronizado por parâmetros politicamente corretos, esteticamente neutros e poeticamente nulos.

—Warthi, Warthi… [gritando para o anjo] Gabriel, chama o Rui Barbosa, o João Ubaldo, o Houaiss e o Rubem Alves pra conversar com o homem… tá duro de domar o verbo rebelde dele!


PS: texto concebido em parceria com a amiga Silvia Ferrante, com quem compartilho uma saudade imensa do literato maior Walther Castelli Júnior.

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