Quem não estiver apto a disputar o pentatlo nos Jogos Olímpicos não deve viajar do Rio de Janeiro a Berlim no que as companhias aéreas chamam de "classe econômica", embora saibam que se trata de um eufemismo para "vagão de búfalos" —exceção feita à comida, já que a dos búfalos é certamente melhor.
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Bem sei eu da imagem do Brasil. Falar em Brasil é evocar índios, a Amazônia e ditadores militares cobertos de medalhas do tamanho de panquecas, gritando ordens a pelotões de fuzilamento em espanhol de acentos bárbaros, nos intervalos de telefonemas nervosos para bancos suíços. O fato de um brasileiro, como eu, confessar que nunca esteve no Amazonas —viagenzinha de umas seis horas a jato, ou mais, a partir do Rio de Janeiro—, que só viu dois índios em toda a vida —um dos quais deputado federal, de terno e gravata— e que fala espanhol mal, eis que sua língua nativa é o português, deixa as pessoas dos outros países muito desapontadas, achando que estão lidando com um impostor, ou com um mentiroso cínico.
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Duas razões me fazem incompetente em matéria de dinheiro. A primeira vem da profissão, pois a opulência não costuma apanhar as letras. Lembro um outro escritor, respondendo sobre se livro dá dinheiro. “Dá, sim”, disse ele. “Contanto que não seja o escritor.”
A segunda razão é a minha condição de brasileiro. No Brasil, não há dinheiro. Há papéis coloridos e moedinhas talvez feitas de restos de panelas velhas. E isso vem de longe. Nasci quando o mil-réis foi substituído pelo cruzeiro.
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Formada em meio a esse ceticismo, a família estava, naturalmente, desprevenida para os rigores do inverno. Senti-me na obrigação de realizar pelo menos um seminário preparatório. Comecei com informações básicas, numa conferência preliminar em que abordei vários tópicos, tais como o que é o inverno, o que é frio —com uma aula prática mais ou menos dentro da geladeira—, o que é uma ceroula, por que não se pode passear no Halensee de bermudas e sem camisa em janeiro, como se explica que neve não é algodão nem tem açúcar, e assim por diante.
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Dir-se-ia então que é mais difícil um brasileiro ser atropelado em Berlim do que um nadador olímpico se afogar numa piscina infantil. Ledo engano, conclusão precipitada. Tanto eu quanto minha mulher, que sobrevivemos rotineiramente à travessia das ruas mais conflagradas do Rio de Janeiro, já fomos atropelados diversas vezes em Berlim. O recordista sou eu, com uns oito casos, todos sem maiores consequências, a não ser um machucadinho ou outro e protestos indignados por parte dos atropeladores. Sim, porque não fui atropelado por carros, ônibus ou caminhões, mas pelo mais terrível, impiedoso e ameaçador veículo que circula pelas ruas de Berlim: a bicicleta.
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Nota do blogueiro: Os trechos acima reproduzidos foram extraídos do livro “Um brasileiro em Berlim”, editora Objetiva. O autor, um dos maiores da língua portuguesa, contava histórias como ninguém. Irreverente, avesso a protocolos e formalismos, ele disparava para desencanto dos mais eruditos: “Encaro com muito tédio papo de literatura.” Quando ganhou o prêmio Camões, o escritor absteve-se de malabarismos explicativos e respondeu a um jornalista sobre o significado da homenagem: “Pra ser sincero, eu não acho nada demais. Ganhei porque eu mereço.” O signatário deste blog reverencia a genialidade do baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).
Última crônica de João Ubaldo Ribeiro
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