quinta-feira, 2 de maio de 2024

Nosso Bar e o bauru de lombo

 

José Tarciso de Carvalho do Nosso Bar, da velha-guarda baurueira


Ensanduichado fiquei ante o desafio de escrever algo sobre manjares deste rincão de ribeirinhos do Jaguari. Não conseguiria, jamais, ser objetivo sem simultaneamente navegar pelos meus humanos devaneios, pelas minhas sentimentais experiências.


A cena a seguir descrita aconteceu não raras vezes entre o fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Bar do Formiga, rua Coronel Ernesto de Oliveira, por volta das 18h45. Minha mãe estacionava a Variant defronte ao boteco e incumbia-me de fazer o pedido habitual: três baurus.


Na velha baiuca de mobiliário surrado, a lousa informava os resultados dos treze jogos da loteria esportiva, a TV em preto e branco passava algo que ninguém assistia. Cardoso e Formiga, os idosos proprietários que tinham na parede placas veiculares com seus nomes de guerra, olhares cansados ao longe, estavam sentados. “Três baurus, seu Formiga”, este já faminto moleque demandava ao senhor de semblante fechado. “Bauru eu só começo fazer às sete, espera um pouco”. Não havia outros fregueses no bar, eles não tinham afazeres, mas nada poderia subverter o ritual sagrado de só começar a faina dos baurus às dezenove horas, nem um minuto antes.


Os badalos do sino da igreja do Perpétuo anunciavam o momento crucial. A minúscula chapa era vigorosamente raspada e logo acesa. Lindeza era ver a habilidade do ancião —não tenho recordação de quem fazia os baurus, na verdade eu nem sabia quem era quem— fritando a carne de porco, derretendo o queijo prato, selando o tomate, recheando o pão francês, cortando a obra ao meio e embalando as delícias para viagem em papel pardo.


Adolescente, tempos depois, caí de paixão pelo bauru do Jorge, no velho Canecão, mas jamais minhas papilas sentiram algo parecido com o bauru do Formiga.


Convicção tenho de que o bauru de lombo é uma iguaria genuinamente crepuscular. Lombo, queijo prato ou mozzarella e tomate —cebola é opcional— no pão francês é acepipe que se vê há décadas em bares e lanchonetes desta província. Até nos botequins da periferia o bauru tem essa receita consagrada.


Da velha-guarda baurueira, digamos assim, Bar do Formiga, Bar Teatro, Bar da Rodoviária, o velho Canecão do Jorge Nicolau, Nosso Bar, todos merecem menção e ajudaram a construir a tradição do sanduíche de lombo em São João da Boa Vista. Dos citados, só o Nosso Bar permanece aberto, tocado pela mesma família e fiel às origens.


Não consegui apurar ao certo o ano de fundação do Nosso Bar na praça Governador Armando Salles de Oliveira. Foi aproximadamente entre o fim da década de 1950 e começo dos anos 1960.


Em 1974, o mineiro José Maria de Carvalho, o popular Zezinho, que tinha histórico de suor no ramo, comprou o estabelecimento. No pacote da aquisição estavam o bauru de lombo e o chapeiro Nelson Bastoni, que viria a ser um dos melhores amigos de Zezinho. Evidências existem indicando que, nalgum momento, intuitivamente ou por sugestão de frequentador, o talentoso Nelson forjou, sob a coifa do Nosso Bar, o lanche de carne suína que é um símbolo deste povoado do mais lindo sol poente.


Quando Zezinho tomou posse do Nosso Bar, ele reverenciou aquele sanduíche que reinava no balcão. O tempero do lombo foi levemente aperfeiçoado sem agredir a essência aromática que tanto deleitava.


Na praça, à sombra da torre da Catedral, Zezinho, desde sempre auxiliado pelo rebento Tarciso, comandou o Nosso Bar até 1980, quando o Bradesco comprou o imóvel. Com a forçosa saída veio o prédio próprio no número 226 rua Coronel Ernesto de Oliveira, onde o negócio funciona até hoje, onde o bauru continua reinando.


Zezinho faleceu precocemente em 1996. O filho que lidava a seu lado, o discreto José Tarciso de Carvalho, apoiado pelos irmãos Inez e Sílvio, assumiu o bar desde então. Nestes cinquenta anos sob a batuta do clã Carvalho, o Nosso Bar preserva dignamente esse sanduba que rompe gerações, que é um patrimônio cultural de São João da Boa Vista e que está definitivamente gravado no paladar afetivo de seus habitantes. Nosso é o Nosso Bar!

 

A iguaria de lombo, queijo e tomate no pão francês

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