domingo, 19 de janeiro de 2025

Pizzas, sonhos e paixões

 

Há na inquietude humana um chamado irresistível pelo desafio, pelo oposto, pelo que rompe as fronteiras do conforto; foi assim que um rapaz do norte da Itália, seduzido por uma paixão brasileira, pelo calor dos trópicos e pela liberdade que só o desconhecido oferece, trocou a segurança fria dos Alpes da Bota pela incerteza vibrante e cálida da América Latina. 


Vai daí que uma confluência de vontade, circunstâncias, sustos e amizades guiou Marco Rota ao Brasil. As devoções pelo país e por uma casabranquense, Lídia Maria, foram determinantes para o jovem lombardo ter endereço fixo em São João da Boa Vista.


Aquela pizza que reunia a famiglia em Cassano d’Adda, região da Lombardia, virou profissão depois que ele decidiu oferecer um disco genuinamente napolitano a esta província crepuscular. O “genuinamente” é por minha conta, já que Marco fez algumas concessões ao gosto brasileiro: a redonda é grande, como as nossas, e a cobertura é mais robusta. Embora mais generosa, ela, a cobertura, está longe de ser desequilibrada.


Numa pequena casa alugada no bairro Santo André, pertinho do Instituto, o peninsular Marco, fiel à farinha italiana e ao tomate San Marzano, vai perpetrando na novíssima San Michele belíssimas obras que têm a alma e o sabor de suas origens. Carismático e falante existe italiano que não seja?— o pizzaiolo brinca com a pronúncia do nome da pizzeria: “Lauro, per Dio, di’alla gente che il nome è SAN MIQUÉLE, non è SAN MIXÉLE!”. Sì, Marco, lo farò.


É evidente que a Itália de hoje pouco se assemelha àquela devastada pela Segunda Grande Guerra. Tampouco o protagonista desta crônica enfrentou as privações que afligiram seus antepassados na metade do século passado. Ainda assim, a história de Marco Rota carrega simbolismos profundos da saga da imigração italiana no Brasil: cruzar o Atlântico buscando uma vida melhor em uma distante e alvissareira terra prometida.


Nota do blogueiro: Lídia Maria, primeira-dama da San Michele, confessou a imagem que ela projetou do autor destas linhas antes de nos conhecermos pessoalmente: “Lauro, achei que você fosse um senhorzinho rabugento, do tipo daqueles ranzinzas críticos gastronômicos que só enxergam defeitos em tudo e todos”. 



🍕🍕🍕

Pizzeria San Michele

São João da Boa Vista, SP

Só delivery!

19 99280-4376

Quinta a domingo, a partir das 18h



domingo, 12 de janeiro de 2025

Peru 4 x 0 Chile

 

Já comentei por aí que me apaixonei ainda mais pela comida peruana durante recente viagem ao Chile. Para chegar a essa conclusão, é claro que também provei pratos genuinamente chilenos. E vou contar como foi essa experiência.


Indicações e reviews apontaram o Galindo como o restaurante a ser visitado. Saímos do hotel em Lastarria e caminhamos por vinte minutos até o local, no bairro Bella Vista. Mesas na calçada e um Chardonnay gelado ajudaram a aliviar o calor daquela noite de dezembro. Josi quis pegar leve nas escolhas, mas eu fiz questão de começar pesado, com duas iguarias-raiz típicas chilenas. Não demorou para que o pastel de choclo e a cazuela de vacuno pousassem, fumegantes, na mesa. O pastel de choclo, um creme de milho adocicado cobrindo um recheio de carne, cebola e ovo, estava longe de ser ruim, mas também não arrancava nenhuma exclamação. Já a cazuela, pobre Josi, era um caldo ralo —sem tempero, sem graça, sem alma— com cenouras boiando e nacos de carne bovina e meia espiga de milho cozido sem sal no fundo da cumbuca. Sopa de hospital, perto daquilo, é um banquete divino.


Ainda assim, demos outro voto de confiança à gastronomia local e, no dia seguinte, decidimos experimentar a chorillana no sugestivo El Palacio de la Chorillana, pertinho do Galindo. A coisa chegou numa travessa: uma montanha de batatas fritas cobertas por carne ressecada picada e quatro ovos fritos. Algo estranho, sem apelo e sem lógica culinária. Frustrados, voltamos convictos à nossa deliciosa rotina inca de ceviches e lomos saltados.

Venda Canta Galo

 

Há paragens que parecem sobreviver ao fluxo inevitável dos ciclos, como se tivessem firmado um pacto silencioso com a eternidade. São refúgios onde o passado ainda conversa com o presente. Ali, entre prateleiras antigas e paredes descascadas sobre o piso vermelhão, a rusticidade abraça gerações e histórias. É mais do que um ponto de venda, é um altar da despretensão em que cantos e objetos contam trajetórias de labor, encontros e resiliência.


Em tempos idos, aquele pedaço fértil de chão era conhecido como Lagoa Formosa. Hoje, com a monocultura da cana, diz-se dos mesmos arredores: “lá perto da usina; nas proximidades da Abengoa”. Na mencionada região, mais precisamente no Sítio Canta Galo, a Venda do Tião Rehder é um centenário comércio que abastecia os colonos das fazendas vizinhas. Tião Rehder não mais está neste plano, tampouco há colonos nas imediações, mas o velho prédio do lendário armazém de secos e molhados continua lá, resistindo. Aventureiros de toda sorte já tocaram o empório. 


Hoje, sem aventuras, a bodega rural é gerida pelo casal Alana e João. Ela, trabalhou em restaurantes de São João; ele, agricultor e meeiro, cultiva quiabo nas roças que cercam o estabelecimento. 


No meio daquela vastidão agrária, a Venda Canta Galo ainda oferta aqueles clássicos itens de mercearia, mas o negócio ganhou um tempero de botequim raiz. Alana carregou das cozinhas onde labutou ideias para incrementar o balcão. A poeira na garganta é lavada com Brahma gelada. Acepipes deliciosos, lindamente apresentados, matam a fome de uma freguesia eclética: médicos avançam sem piedade no lambari frito, lavradores atacam a língua com molho de tomate, empresários se lambuzam com frango a passarinho, motociclistas de fim de semana aceleram fundo sobre a travessa de dobradinha e operários se fartam com moelas.


Um bancário, metido a cronista, aceitou o pot-pourri do cardápio acima. Embriagado também pela poesia da simplicidade, ele se deixou levar por reflexões sobre a extraordinária capacidade humana de empreender, reinventar-se e transformar territórios áridos em oásis.

🍺🍺🍺
Venda Canta Galo
Todos os dias, das 8 às 20h
WhatsApp: 19 99842-4035
Como chegar? Waze ou Google Maps

O Mestre dos Lanches


 Não existiam delivery, cartão de crédito nem batata palha (argh!) no x-tudo. Ketchup e maionese ficavam naquelas bisnagas plásticas que a gente apertava sem dó sobre o ki-galo, o x-bacon, o x-salada etc. Ninguém chamava de hambúrguer; na madrugada de sábado para domingo, a molecada saía dos bailes da CSB —na Esportiva ou no Recreativo— para comer um LANCHE no Hi-Fi. Nos pós-bailes, eles ficavam abertos até as seis da manhã para alimentar os notívagos famintos e os adolescentes que, vez ou outra, não pegavam ninguém nos salões.

A coisa toda começou em 1982, num trailer na baixada da rua General Osório. Mais velho, Daniel juntou os brothers Denilson e Vivi para abrir o primeiro “carrinho de lanches” de São João. Em Ituiutaba, onde a família Borges (não são meus parentes) morou, Daniel trabalhou numa lanchonete chamada Hi-Fi. De lá, ele trouxe o know-how “lancheiro” e o mesmo nome para ser o pioneiro nos Crepúsculos Maravilhosos. Deu muito certo; a energia da juventude fervia na rua entre bocadas homéricas e garrafinhas de Coca KS.

Denilson aprendeu rápido a arte hamburgueira e, faça-se justiça, ele foi o cara que criou muitos dos lanches (o ki-galo, por exemplo) comandando a chapa na companhia do irmão Vivi. O movimento recorde não sai de sua memória: 738 lanches numa noite pauleira de sábado até o alvorecer de domingo.

Depois de quase um quarto de século empunhando a espátula no Hi-Fi, Denilson foi ganhar o pão em outro ramo. Entregou revistas da Abril e produtos de vendas online. Cansou, mas não descansou! Na General Carneiro, sem modéstia no letreiro, ele voltou às origens pilotando a própria chapa n’O Mestre dos Lanches. Agora tem delivery, cartão de crédito, PIX e ketchup no sachê (argh!). A vida moderna só não mudou o sabor fodão dos lanches e o x-tudo, viva!, sem batata palha.


🍔🍔🍔🍔
O Mestre dos Lanches
General Carneiro, 258
São João da Boa Vista, SP
📲 19 99976-7439
De sexta à quarta, a partir das 18h30

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Profecia derretida

O famoso Relógio de Flores de Viña del Mar

 Na parada para o desayuno nos arredores de Santiago, uma senhora idosa, brasileira, superagasalhada, se incumbiu de tocar o terror em quem estava na fila esperando o café. Mediu Josi da cabeça aos pés e, com olhar de desprezo, sentenciou exibindo a autoridade de quem veste gorro e cachecol: “Nunca, jamais vá a Viña (ela quis demonstrar intimidade com Viña del Mar) e Valparaíso sem roupas de inverno. Vocês vão congelar hoje; a temperatura não vai passar de 8ºC”.

Ressabiados, mas confiando mais nos apps meteorológicos do que naquela profeta glacial, (re)embarcamos na van com nossos trajes de verão. Não foi o caso de uma família de seis paraenses. O provedor nortista, zeloso dos seus, comprou a história da hecatombe climática da velhinha e, num brechó próximo, desembolsou US$ 100,00 para proteger o clã com casacos puídos e malcheirosos. Encapotados, eles adentraram o coletivo como se estivessem na Patagônia no mês de julho.

Josi confessou-me depois que quase acreditou também. Receosa de ficar desconfortável no passeio, faltou pouco pra ela, no brechó, sucumbir a um moletom fedorento que estampava “I ❤️ Chile”.

Horas depois, circulando nas belas Viña del Mar e Valparaíso, sob 29ºC, procurei a tiazinha nas ruas para vê-la hibernando, enrolada em várias camadas de malha de Jacutinga. Não a vi, mas testemunhei os paraenses radiantes, em camisetas, bermudas e vestidos leves. O inútil arsenal polar deles foi devidamente abandonado na van.

O genial Pablo Neruda escreveu: “É o verão que nos ensina a renascer, sem pressa, sem medo.” O tosco, e nada genial Lauro Borges, reescreve: “É o verão que nos ensina a renascer, sem pressa, sem medo de previsões falsas de anciãs arrogantes e desinformadas”.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Réveillon no exílio: uma crônica de Año Nuevo

Restaurante Como en Peru, bairro Lastarria, Santiago do Chile

 Não me encantei com a culinária chilena. O destaque das panelas deles, sem dúvida, está na marcante influência peruana. Ceviches e lomos saltados são as melhores refeições de Santiago —e, imagino, de todo o Chile. Durante nossa breve passagem pela capital, a iguaria local que mais me agradou foi a empanada de pino. Então, segue o baile.

Chegamos ao hotel depois das 23 horas. Esfomeado eu estava, pela minha natureza e pelo lanchinho meia-boca da Latam. O recepcionista, sem muita convicção, indicou-nos um modesto restaurante do outro lado da rua. COCINA PERUANA no letreiro já anunciava uma digna matada de fome. Alex e Mariano Villalobos, os gentis irmãos incas, serviram-nos ceviche e lomo saltado. O jantar memorável avançou madrugada adentro, regado a pisco sour. Voltamos ao local mais três vezes, tamanha a sedução do tempero e do frescor dos peixes.

Ao descobrirmos que o Como en Peru —assim se chama o lugar— seria um dos poucos abertos na região na noite do dia 31, escolhemos aquela casa para passar nossa primeira Virada no exílio. Elegemos, como não poderia deixar de ser, ceviches para a ceia. Rolou até uma celebração com mojitos e taças de espumante, coroada com um típico suspiro limeño como sobremesa de Ano Novo.

Na mesa ao lado, um jovem casal brasileiro se acovardou diante do cardápio variado de uma gastronomia desconhecida. Ao vê-los entrar em 2025 comendo papas fritas, senti verdadeira compaixão por seus temores diante de novas experiências.

Sob as bênçãos dos mapuches, naquele simples estabelecimento étnico no movimentado bairro Lastarria, atendidos pelo honesto suor imigrante dos manos Alex e Mariano, alimentados com deliciosos pratos andinos, vivenciamos, eu e Josi, o mais inusitado Réveillon de nossas rodadas existências.


Lomo saltado e ceviche