quinta-feira, 22 de junho de 2017

Zé do Queijo


A mensagem do Pedro Oka, pedindo um frila, pipoca no WhatsApp: “Precisamos falar de queijo fresco, precisamos falar do Zé do Queijo”. Escrever histórias de gente da terra que ganha o pão na terra fazendo comida da terra. Eu me alimento disso. Bora lá!

A casa no São Benedito é simples. Simples, limpa, arejada e bem cuidada.

Mais de meio século de vida, José “do Queijo” Geraldo Bargas, um velho conhecido, me recebe com café na cozinha junto à mulher, Dona Lucelina. Passa das três da tarde e o semblante do casal é de cansaço. A estafa do dever cumprido. A exaustão de quem trabalha 364 dias por ano —o Natal é a única folga. 

Naquela segunda-feira de fim de outono a rotina não foi diferente. Às duas da madrugada, bem antes do despertar das galinhas, Zé do Queijo e a esposa já estão na estrada rumo ao sítio do Lélio, onde pegam religiosamente trezentos litros do mais puro leite. O negócio está em família: Lélio, o dono das vaquinhas, é irmão de Dona Lucelina. 

Depois do bate-e-volta na zona rural, começa a lida para transformar o líquido branco das mimosas em 120 lindas peças do melhor queijo fresco da galáxia. Um produto artesanal que mescla primores: o primor do sabor suave, o primor de uma massa com pouca gordura, o primor da consistência —macia e não pastosa— que desmancha na boca e o primor no uso equilibrado do sal. 

Uma autêntica joia culinária para ser consumida solo, com pão e azeite, na salada, com doces caseiros, em sanduíches…

Zelosa do tesouro que guarda, Dona Lucelina não revela o segredo do queijo. Obcecada pela higiene e pela qualidade da matéria-prima, ela conta que a receita de família foi sendo aperfeiçoada ao longo de mais de quinze anos pelejando na faina queijeira. 

Nas primeiras horas da manhã, Zé, sem perder tempo, já está nas ruas de São João da Boa Vista e Águas da Prata entregando num seleto rol de pontos de venda a cota diária do seu singular cilindro láctico viçoso. Cilindro láctico viçoso!? Ai meu Deus! Ainda bem que o queijo do Zé, fresco, básico e alvo, não padece das firulas mofadas e dos arabescos verbais rançosos do cronista.

Abençoada seja a brava resistência dos pequenos produtores da província. Abençoados sejam os comerciantes locais que abrem espaços nos seus balcões às mercadorias destes valentes microempreendedores da aldeia. Abençoado seja o queijo do Zé!

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Oitentistas

Você, caro leitor, que passou parte da infância ou da juventude na década de 1980, chamou, em algum momento, agasalho esportivo de abrigo? “Bacana esse seu abrigo. É da Adidas?”

E agasalho “abrigo” esportivo, naquela época, tinha que ser o clássico Adidas azul-marinho, que formava um impecável conjunto com o tênis modelo Roma, branco e azul, do mesmo selo lendário das três listras.

Eu, então moleque, pré-adolescente, tive o meu abrigo —marrom— da moda, que servia como traje para as mais diversas efemérides. Perdi a conta em quantos aniversários fui retratado com o figurino training. Roupa literalmente de missa, este escriba tomava a comunhão na Catedral com a mesma indumentária de quem fazia o teste de Cooper. Era chique.

Abre parênteses. O mano Gui há de perdoar a minha indiscrição: ele, numa festinha familiar, teve a maior falta de senso estético da História, combinando(?) o seu abrigo cor de vinho com mocassim de bico fino. Fecha parênteses.

Adidas em Sanja era na rua Hugo Sarmento, n’O Coringão. Quem lembra? Quem lembra da morena bonita, alta, olhos claros, cabelo liso, fumante inveterada, que atendia os fregueses da loja com mínimas palavras e um semblante sério, fechado? Ser atendido por essa cara de poucos amigos era obrigatório para o incauto que quisesse ter Adidas no guarda-roupa. Tive algumas peças da Adidas, mas nunca vi um sorriso da moça.

Navego por reminiscências oitentistas de consumo da província macaúbica e, pá!, outra pérola: Gigante Operação Vassoura, o popular Vassourão. O estabelecimento abriu as portas na Ademar de Barros para vender tênis de marcas ordinárias por preços idem. Era o típico comércio que apelava para um ambiente com música no volume máximo e tiras de papel picado no piso —qual é a explicação mercadológica para infestar o chão com picotes disformes de papel vagabundo? 

North Star era a etiqueta carro-chefe do Vassourão. A sedução da economia funcionou até os clientes começarem a perceber que os calçados dali, além da falta de charme, careciam de conforto e durabilidade. Tive um par da North Star que não aguentou trinta dias de uso. Por que me lembrei disso? Gigante Operação Vassoura, isso lá é nome com pegada comercial? Será que o dono era janista?

E segue a falta de assunto, ou o excesso de recuerdos: 1ª Cópia, Foto Real ou Peninha Gianelli? Qual foi a videolocadora de sua preferência no começo da era do videocassete? Certeza mesmo era a marca do aparelho que reproduzia as fitas: Panasonic. Milhões e milhões foram iniciados no cinema em casa com os videocassetes japoneses que entravam no Brasil pelo Paraguai. Stallone, Schwarzenegger ou Chuck Norris? A Hora do Pesadelo, Um Tira da Pesada ou Loucademia de Polícia? Você, desleixado leitor, rebobinava a fita antes de devolver?

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Carnaval


Era ritual em qualquer família brasileira de classe média na década de 1970. Levar os filhos às matinês de Carnaval. Mais: levá-los fantasiados.

A vontade da criança pouco importava. Zelosos pais só cumpriam integralmente seus deveres se arrastassem a prole aos bailes vespertinos. E não bastava, aos genitores, a simples presença da gurizada. A vestimenta alegórica era compulsória para exibir os rebentos à sociedade.

Minha mais remota recordação momesca é do Centro Recreativo, lá pelos meus quatro ou cinco anos. Fomos, eu e o brother Gui, de indiozinhos. Índios híbridos, diga-se. Meio apaches norte-americanos pelo penacho e outros adereços, e meio caiapós pelas diminutas indumentárias. Um pé no Arizona e outro no Xingu.

As mães, maquiadas e sobre saltos enormes, aproveitavam o tríduo profano para desfiles de fendas, decotes e tomaras-que-caia. Não eram poucas as fumantes que empesteavam de nicotina os salões dos clubes. Algumas bebiam. Outras bebiam muito. Uma coisa, salve!, intolerável hoje em dia. 

Aquela turba insana, dedos indicadores em riste, num transe rítmico ao som de marchinhas, me assustava. Naquele calor infernal, incomodado pela overdose barulhenta de “Chiquita Bacana”, quase nu, busquei proteção nas caçulinhas da Antarctica: tomei guaraná tanto quanto as madames tragavam Charm. Sorver o canudinho, na mesa, era boa desculpa para ficar longe daquela muvuca burlesca.

No coração urbano de Sanja, involuntariamente, representei bem o personagem da minha fantasia: um indígena acuado pelos delírios do homem branco.

Anos depois, menos manipulável e mais arisco, aceitei quando Dona Marly, mãe do amigo Tocko, convidou-me para participar de um bloco. No mesmo Centro Recreativo, participaríamos do concurso de fantasias caracterizados como prisioneiros, sob o nome de “Foragidos de Alcatraz”. 

Na hora H, empaquei. Impliquei com o uniforme zebrado e com a corrente presa ao tornozelo. A implicância deste escriba, na verdade, era com a própria inépcia carnavalesca. Covardemente, fugi de ser “foragido”. 

Fujo, confesso, até hoje, tal qual um pierrô aterrorizado. Fujo do cheiro das máscaras de papelão, da serpentina, dos confetes e da estridência contra a “Cabeleira do Zezé”.

Não, mamãe, eu não quero!

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Léxico vintage


O frio desperta necessidades de consumo no guarda-livros Orlando. A japona azul-marinho da loja do Zeca Italiano é a cobiça dele para usar nos meses de inverno.

Munheca notório, seu espírito sovina é mais forte que o impulso de comprar o agasalho. Zeca Italiano não vai ver a cor dos caraminguás de Landinho, que vai enfrentar a friagem vindoura com as jaquetas puídas de mil novecentos e guaraná com rolha. 

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Nada contido é o compulsivo desejo de Landinho pelos júbilos carnais. À boca pequena comenta-se nas esquinas sobre as estrepolias extra-conjugais dele com a sirigaita Neide Bisturi.

Dia destes, a recatada Ivonete, esposa, cobriu-o de chapoletadas e safanões, quando a ceroula manchada de batom entregou mais uma pulada de cerca do marido herege.

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Colérica pra dedéu pelas recorrentes infidelidades, Ivonete radicalizou na punição ao cônjuge: a radiola que Landinho herdou do pai foi impiedosamente destroçada a marteladas.

Assustado com o banzé causado pela ira destruidora da furiosa mulher, ele conjectura: 
—Ela deve estar lelé da cuca.

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No balcão da venda do João Garrucha, os gorós libertaram o verbo de Landinho:

—Nenete se desmazelou muito de uns tempos pra cá. Ela anda muito marmota, mal-ajambrada à beça, passa o dia com os zóio remelado, com o cabelo sebento. Muié assim não faiz vontadi no homi. A Neide dá gosto de ver, é uma cabrocha batuta, perfumada, tá sempre supimpa, elegante…

—Vorta! A nossa patota vai te dar razão, Landinho.

—Pombas!, João Garrucha, cê sabe que, tirando a minha muquiranice, eu sô um homi bão. Não entendo patavinas por que a Nenete relaxou desse jeito.

—Você abre a mão pra Nenete se arrumar?

—Então…

—Pois é, então…

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Landinho matutou, matutou, matutou e decidiu ser menos apegado ao próprio cascalho: negociou em três parcelas a japona azul-marinho da loja do Zeca Italiano. Também comprou um ramalhete de flores, uma caixa de bombons e um anel. 

Ainda não se sabe se os mimos foram para Nenete ou para a alcova pecaminosa de Neide Bisturi.