sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Mundinho Facebook

papo de cozinha

Mídias sociais são espaços férteis para criação de lendas cibernéticas. Vez ou outra sou vítima e/ou beneficiário do personagem que brotou das atividades que perpetro na grande rede.

Por algumas fantasiosas deduções decorrentes das minhas digitais no Facebook, Instagram e afins, já fui alvo de pesadíssimas acusações.

Ser tachado de esportista foi uma das maiores barbaridades. Não obstante as múltiplas fotos que retratam um indivíduo notadamente fora dos padrões ditos saudáveis, eventuais postagens de finais de semana em que, enfiado em indumentárias fitness de cores berrantes, caminho ou pedalo em trilhas bucólicas do torrão Sanja-Prata, induzem os incautos a uma falsa visão atlética onde só há fagueiros passeios dominicais.

Publicações que narram viagens de recreio ou efemérides familiares em que sorrisos, poses e belos cenários abundam, também proporcionam divertidos ilusionismos. Família perfeita, digo sempre, só existe em publicidade de margarina. Expresso aqui toda a humanidade do meu clã para me livrar da falsa imputação de felicidade excessiva e ofensiva.

Useiro e vezeiro na produção de imagens e letras sobre os prazeres da mesa, não é raro, em razão disso, me atribuírem uma habilidade que eu definitivamente não tenho: cozinhar. Reconheço meu apreço pela pirotecnia gastronômica, mas assumo a destreza quase nula no fazer. Muito barulho pra pouca mão na massa.

Anos atrás um conhecido me convocou à sua casa. Ansioso, ele tirou do freezer um lindo pernil de cordeiro e intimou: "Sábado ele é todo seu. Me passe os ingredientes para o tempero que você vai preparar essa maravilha". Apavorado e sabedor do quão precioso era aquele tesouro ovino, é óbvio que recusei a tarefa. Recusei, mas implorei por um downgrade na patente: de cozinheiro para apenas comensal.

Dia destes, de novo, o escriba fanfarrão foi convidado para outra estripulia culinária. Fabiana Gimenes, a blondie carismática do programa Papo de Cozinha, encasquetou que eu seria o cara a pilotar o fogão na TV. Essa coisa embriagante chamada ego impediu-me de declinar o chamado.

Uma receita de fácil execução foi a primeira providência tomada pelo MasterFakeChef. Levar a esposa ao estúdio foi a segunda medida preventiva de desastres.

Uma gafe ou uma trapalhada cinematográfica, resignado com o inevitável eu já estava, seria um bom mote de humor para a crônica da semana.

A coisa, surpresa!, rolou legal. Uma produção redondinha, uma direção paciente e uma apresentação descontraída. A Globo!

O êxito na empreitada televisiva, pensando bem, foi muito danoso. Roubou-me o gancho de gracejo para o texto. Obrigou-me a lavrar aquelas divagações sociológicas de almanaque nos primeiros parágrafos. E, por fim, contribuiu para pincelar com tintas definitivas o quadro deste embusteiro das comunidades virtuais.

Nasce o mito! Morre o mito!

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Greve

GREVE
Economia ladeira abaixo. Crise política cada vez mais agravada pelos dramáticos desdobramentos no Legislativo e no Executivo. A nação se arrastando, por tudo isso e pela leseira que nos causam essas temperaturas diabólicas. Greves, protestos, motins e revoltas pipocam em todos os segmentos relevantes do país. O conhecimento da realidade obriga o cidadão a fazer um pequeno tour informativo por aí. Ouçamos atentamente algumas vozes do descontentamento.

Maçarico
Esse tal de leitão é muito arrogante. O suíno é gostoso, mas é muito marrento. Vá lá que a carne dele seja saborosa. E é. No entanto, caramba!, não custaria nada ele dividir os holofotes à mesa e me dar os créditos crocantes da pele. Só volto a prestar o fogoso acabamento pururucante depois do devido reconhecimento público do meu valor.

Borbulha

Sem graça e sem atrativo nenhum. Sem sal e sem açúcar. Ela só ganha um gingado quando eu entro com meus dotes efervescentes. A "patente" gasosa é por minha causa. Ingrato líquido H2O! Só retorno à garrafa se receber a merecida condecoração borbulhante.

Queijo

Sou o contraste pungente à melosidade excessiva da Julieta. Com meu branco láctico, trago também equilíbrio cromático à nossa dupla. Nada quero além do meu papel. Não sou estrela, mas também não aceito ser coadjuvante. Estou no mesmo nível dela e é assim que quero ser apresentado. Goiabada, a partir de agora, somente ao meu lado. Em cima, jamais. Estarei fora do prato se ela exigir o protagonismo.

Azeitona
Quem confere autenticidade a uma receita de empada? [gritando] Sou eu, porra! No boteco ou no buffet grã-fino, ela só impõe respeito se me tem no recheio. Juro que não comparecerei à próxima fornada se o mérito azeitonístico não for cantado em prosa e verso. Empadinhas, cansei!

Manteiga
Percebo o atrevimento de requeijões e geleias rodando bolsinhas por aí. Sei que o francês é volúvel e sucumbe ao desejo do miolo. Foda! Vou deixar bem claro que a virtude da untuosidade é minha. A gorda cremosidade que umidifica baguetes e afins é a razão d'eu existir. Me terás deliciosa no café da manhã se me for dada a exclusividade lubrificante das bengalas. E não peço perdão pelo duplo sentido, pois muito me orgulho das minhas outras utilidades. Aquele filme do Marlon Brando prova que não minto ao falar desta amanteigada versatilidade.

Couve
Não quero mais estar escondida no "completa" da feijoada. Ou melhor, não queremos. Vou pra essa briga com o apoio dos meus companheiros também ignorados: vinagrete, farofa e laranja. Sabemos do nosso status acessório. Respeitamos essa classificação, mas recusamos com veemência o limbo da não menção. Aceitamos o abrigo numa tipologia menor, mas exigimos nossa nominação expressa em cardápios, lousas, letreiros etc.

Pizza
Cariocada herege! Malemolência desgraçada a desse povo. Minhas napolitanas origens são reiteradamente vilipendiadas por essa turba praiana que me consome submersa em ketchup. Puta mau gosto! Azeite, sim, sempre. Só ele. Não serei mais assada no Rio se não houver pena de morte pra quem ousar me esfregar naquela assustadora pasta atomatada.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Ray-Ban e chinelos

natureza

Estacionei o carro na lateral da estradinha de terra. Dali em diante, só caminhando. Fui...

A trilha até a cachoeira pode ser vencida com pouco esforço em míseros setenta passos. O terreno relativamente limpo, sem obstáculos, deixa mais agradável a vereda em seu suave declive. Aquela imensidão verde para no limite da estreita faixa onde os urbanoides circulam.

Nestes dias de temperaturas desérticas, o corredor descrito transporta o vivente da secura infernal para um recanto de água abundante, fresca e limpa. Banhos ali são mais do que refrescantes, são restauradores de civilidade. O mergulho na piscina natural resgata uma dignidade quase destruída pelo calor que não é de Deus.

Bicho do asfalto e gorducho, desço vagarosamente ao paraíso. Ressabiado com o cenário off-cidade, sou precavido para que peçonhas não estraguem o meu recreio. Observo muito e, perdão cachorrada, farejo idem.

PQP!!!! Tem veneno no pedaço!!!!

Um veneno com a substância letal da morenice brasuca.

No deck rochoso, uma beldade esculpida em harmônicas sinuosidades relaxa sem qualquer material têxtil ou sintético a cobrir-lhe as vergonhas. Seu traje se resume a um par de Havaianas num extremo e óculos ao estilo Jackie Kennedy no outro. Fones nos ouvidos e um geme-geme ritmado entregam que ela escuta Marisa Monte.

A pose de estátua erótica também se quebra com os lentos movimentos que a acomodam numa posição mais confortável. Lagartear ao léu é preciso...

Respeitoso com o repouso alheio, me abstive da aproximação que poderia provocar um afoito gesto para esconder pele e pelos.

Admirador da natureza bruta, camuflei-me nos arbustos como um paciente fotógrafo da National Geographic.

Buscador incansável da paz conjugal, foquei a câmera do meu iPhone na direção de paisagens menos insinuantes.

Faminto insaciável, depois de sessenta minutos plantado, abandonei a posição de voyeur para devorar um curau no bosque da Prata.

Entusiasta de gente bem resolvida, aplaudo a socialite sanjoanense que renunciou temporariamente ao universo do jet set crepuscular para, numa quinta-feira de primavera, se desnudar sozinha e despreocupada num torrão recôndito da floresta platino-pratense.

A mata densa, o canto das aves, o ruído da vigorosa catarata, a formiga operária, o milho verde e a moça nua se espreguiçando na pedra. Biodiversidade, eu curto!

jackie k

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Tabus e alicates

FERRAMENTAS
Charles Darwin, se vivo fosse, teria na figura deste roliço escriba uma prova cabal do acerto de suas conclusões evolucionistas.

Nenhuma vanglória, zero de autolouvações, tampouco jactâncias, caríssimos leitores. A constatação de um notável progresso pessoal não exclui o mea-culpa do quão retardado foi esse avanço. Um darwinismo terceiro-mundista, digamos. Um saltinho demorado, convenhamos.

Faz parte da cartilha de conquistas do homo medius alguns itens essenciais: diploma, família, casa, carro, emprego estável, conta no banco, cachorro, pijama de bolinhas, perfil no Facebook e uma caixa de ferramentas.

Atenho-me a esta última e importante menção: a fundamentalíssima caixa de ferramentas. Inatacável é o provedor do lar que tem na garagem um providencial estojo de apetrechos reparadores.

Cumpridor dos deveres de cidadão, temente a Deus, pagador de impostos, zeloso com a prole e marido fiel, são todos atributos desejáveis no homem de bem. Mas de nada adianta esse cesto de virtudes se o varão não for o legítimo possuidor de uma conveniente caixa de ferramentas.

Florear o verbo, repetir conceitos, abusar de sinônimos e arabescos do idioma, carecer de objetividade. São pedaladas marotas —vide parágrafos acima— que o cronista lança mão para encher linguiça, mas são também recursos retóricos para sublinhar momentos ímpares. E este descarado escrevinhador foi protagonista de uma vitória singular no comecinho da semana. Conto-lhes...

Cuidadoso com a integridade física da minha atlética esposa, arvorei-me naqueles magazines xinglings que invadiram a Adhemar de Barros para adquirir equipamentos de proteção para ciclistas.

Num daqueles corredores da Pequim de bugigangas, fui tomado por um devastador sentimento de omissão ao deparar com objetos que deveriam fazer parte da minha vida há mais de vinte e cinco anos —a maioridade dos dezoito seria uma idade razoável para esse batismo de civilidade e prudência. Alicates, martelos, chaves de fenda, aquele arsenal metálico pendurado imputava graves acusações ao paroquiano autor destas linhas: ele nunca teve colhões para ter a própria caixa de ferramentas.

Inimigo de trabalhos que exijam um mínimo de destreza manual, fui arrastado por mais de quarto de século através da generosidade da vizinhança que sempre me acudiu nas horas críticas. O sopro de ar vinha na forma de uma salvadora chave Philips.

Ali, naquela alameda de comércio popular, sitiado por conflitos internos e dramas de consciência, acabei com um tabu existencial, libertei-me de um opressor paradigma de comportamento e, aliviado, comprei a minha primeira e redentora caixa de ferramentas.

Preparado estou ante a imprevisibilidade traiçoeira dos acidentes domésticos.

Ainda sem motivos para o uso inaugural —confesso até um certo receio pela chegada do instante crucial—, ela, a bem fornida caixa, numa prontidão diligente, repousa entre os meus guardados proporcionando uma sensação de segurança jamais sentida nos meus combalidos quinhentos e quarenta meses neste mundo. Alcancei, orgulhoso do feito, o patamar da dignidade entre os meus.