sábado, 17 de agosto de 2013

Pulperia do Moraes

antigamente botequim

Sérgio Moraes é um eterno devotado à cultura de boteco.

No bairro do Rosário de suas origens, a tubaína com furo na tampinha era sorvida nas tabernas do entorno. Bar do Didi, Bar do Monsueto, Bar Tiradentes e Bar 25 compunham a trilha de estufas abarrotadas de acepipes cheios de gordura e temperos.

O moleque tinha paixão por aqueles ambientes encardidos, um tanto desregrados, de prosa e bebidas sem limites. A paquera intensa tinha alvos certeiros: torresmos, ovos coloridos, linguiças e salsichas mergulhadas em molhos suspeitos.

Aos 11 anos enxugou a primeira caipirinha de limão-cavalo. Daí o primeiro porre e o início de uma jornada de prazeres belisco-etílicos.

Por 21 anos ganhou o pão no Foto Real. O que lograva com retratos e revelações deixava nas tascas. E Sérgio foi fundo nas explorações taverneiras: da Tijuca e Vila Isabel, no meio da malandragem carioca, aos cafundós das Minas Gerais, passando, claro, por Belo Horizonte, a capital das alterosas e destino número um dos beberrões e comilões de bodegas.

A primeira aventura atrás do balcão foi o Villa Petiscos, ali na Campos Salles com Teófilo de Andrade. Pelo tamanho e pela estrutura a casa escapou um pouco do conceito do criador e, por essa e outras razões, encerrou as atividades prematuramente. Portas fechadas que deixaram lições ao empreendedor e um legado baiuqueiro a este torrão crepuscular.

Sujeito de convicções, Sérgio voltou ao métier dia destes com o Antigamente Botequim, onde propõe algumas de suas crenças: informalidade, improviso, desalinho, nada de garçons nem números nas mesas, freguês tem nome e apelido, cerveja estupidamente gelada, lousa tosca em vez de cardápios, atendimento caótico, preço justo, cachaça, costelinha de porco com mandioca, fígado acebolado com jiló, bolinho de batata com calabresa, dobradinha, bucho ao vinagrete, panceta, frango com quiabo, chouriço, pimentas várias e por aí segue nestas oleosas e rústicas veredas do paladar.

Que venha o M amarelo do Tio Sam. Os súditos da Beloca acolhem a diversidade, mas, matutos de alma, estão aí com o pé na terra aferrados ao melhor das suas tradições.

Essa vai pro santo!

E dá-lhe gole da marvada no chão áspero e puído do Antigamente.

Em tempo: a chafarica —salve Houaiss pela vastidão de sinônimos— fica na Avenida Oscar Pirajá Martins, 344, pertinho do Instituto.

domingo, 11 de agosto de 2013

Letras, aromas, pimentas e irreverência

Com muita honra fui incumbido de fazer o elóquio de saudação a João Batista Gregório. O amigo, por minha indicação, foi empossado na na noite de 10 de agosto de 2013 na cadeira 37 da Academia de Letras de São João da Boa Vista. Baita orgulho!

posse Tista

Boa noite, presidenta Lucelena Maia, componentes da mesa, confrades, confreiras e convidados. Boa noite, bardo Ademir Barbosa de Oliveira e boa noite ao amigo João Batista Gregório...

Na carência de dados para cometer esta peça retórica de boas-vindas ao neo-acadêmico, pedi para colhê-los in loco no sítio mais condimentado desta província crepuscular. Era noite de segunda-feira e sabendo de antemão que padeceria deveras com o estômago vazio no pós-trabalho, roguei ao anfitrião que me acudisse com um prosaico pão com ovo. O delicioso risoto Paris servido ao escriba e sua consorte, com champignons e presunto, foi bem mais restaurador que o trivial sanduíche.

Entre generosas garfadas no arroz arbóreo incrementado e algumas taças de vinho, ouvi muito e, em nome do protocolo e do decoro desta Casa de Letras, arvoro-me a contar um pouco da história de João Batista Gregório, com o zelo e a discrição de suprimir casos e causos impublicáveis.

A rua 14 de Julho e o bairro do Perpétuo Socorro viram nascer e crescer o caçula de seis rebentos, cinco meninos e uma menina, do casal luso-itálico Paschoal Gregório e Alzira Sansana Gregório.

O pai, comerciante, corretor, pecuarista, era um homem rígido, do tipo que exigia ser o primeiro a sentar-se à mesa e detentor de, entre tantas regalias patriarcais, a de sempre devorar as duas coxas do galináceo, quando este, assado, frito ou cozido, reinava na cozinha dos Gregório. Tista e seus irmãos, na meninice, não conheceram o gosto das ancas de uma penosa.

A comida sempre foi abundante no fogão da dona Alzira. Previdente e dotada de uma mão abençoada, o exagero era explicado porque o marido, não raras vezes, chegava de surpresa com fregueses para fechar negócios em torno de uma polenta cremosa, esparramada no tampo e cortada com linha. O arroz de forno da mãe, criativamente concebido com as frequentes sobras da véspera, está entre os sabores que mais marcaram a infância de João Batista.

A rua era o mundo de Tista fora do horário escolar. Traquinagens e brincadeiras de criança numa época em que poucas vias da cidade eram pavimentadas. No chão de terra, ele e os amigos perambulavam nas redondezas jogando bolinha de gude, brincando de pega-pega, caçando morcegos, armando estilingues para abater impiedosamente pardais e rolinhas e, supra-sumo das travessuras, invadindo o pomar da igreja do Perpétuo para furtar as sacras e polpudas frutas cuidadosamente cultivadas por padres e seminaristas.

Das noites de um tempo pré-televisão, ele guarda no seu baú nostálgico as memórias das comadres e compadres papeando e mexericando nas calçadas, enquanto a molecada gastava nas veredas o restinho da energia do dia.

Nove da noite, impreterivelmente, e a gurizada era recolhida pra dormir. No clã Gregório, os cinco garotos compartilhavam o mesmo quarto.

Estudioso, o mano Toninho, sonâmbulo, recitava, inconscientemente para desespero dos irmãos, as tarefas escolares: “Falésia é uma forma geográfica litoral, caracterizada por um abrupto encontro da terra com o mar. Formam-se escarpas na vertical que terminam ao nível do mar e encontram-se permanentemente sob a ação erosiva...”.

E por aí iam, noite após noite, tratados e decorebas de História, Física, Biologia, tabuada...

Da infância para a adolescência e os prazeres de ler e escrever contaminaram definitivamente João Batista. Influenciado pelas mestras Vera Gomes, Elza Zogbi e Olga Meirelles, ele subia intensamente em todas as vertentes literárias que lhe caíam às mãos: Eça de Queiroz, Machado de Assis, Érico Veríssimo, os clássicos franceses...

Inspirado, arriscou na dramaturgia e redigiu “Jassie, apenas uma lágrima”, uma obra chorosa, triste, encenada com êxito no Instituto de Educação e no Salão Diocesano.

Cheio de pretensões artísticas, também enveredou pela música como crooner da banda nominada, acreditem!, Os Apanágios —quero crer que a qualidade musical era inversamente proporcional ao horrendo nome do grupo. A trupe viajava numa velha Kombi embalando bailes e eventos em São João e região.

Uma passagem impagável do conjunto.

Num baile na vizinha Vargem Grande do Sul, Tista e a prima Neusa Sansana soltavam a voz na canção francesa “Je t'aime... Moi Non Plus”. A interpretação invocava alguns gemidos e, empolgados com a receptividade dos dançantes, os vocalistas se excederam no tom dos ganidos alusivos ao ato sexual. Inconformado com a sonoridade de alcova, com os uivos libidinosos, um diretor do clube onde ocorria a apresentação mandou cortar o som e enxotou Os Apanágios dali. “Isso aqui é um clube de família”, bradava o dirigente moralista.

O apelido Vassourinha decorreu da fama de namorador. Beldades de São João e região deixaram seus nomes no vasto rol das conquistas amorosas do então descompromissado João Batista. Foi uma fase em que ele conheceu sortidas ancas, não necessariamente das penosas.

Em certo período da juventude, aderiu ao estilo hippie. Porra-louca, ganhou algumas mulheres e perdeu alguns empregos por conta do cabelo comprido, sem trato, do sapato plataforma e das roupas extravagantes.

O primeiro flerte com Heliana Ciacco foi no Tekinfin, perto do Carnaval de 1975. Ele rememora a beleza da moça: “Era linda, vestia uma saia de veludo e tinha cabelo chanel”. Da recém-inaugurada lanchonete, cada um com sua turma, atravessaram a Dona Gertrudes e entraram no baile do antológico Palmeiras. Lá na pista do clube a troca de olhares continuou e, intermediado por uma amiga comum, o primeiro encontro foi marcado para o trajeto até a residência dela. Um pouco antes, na solidão da madrugada, Heliana saiu caminhando devagar a espera do pretendente que a resgataria para uma “conversa”. A coisa enrolou porque Tista, motorizado com o carro do pai que só pegava no tranco, percebeu que sua condução estava presa entre dois outros carros. Sozinha, Heliana chegou a sua casa maldizendo o tratante.

Imbróglio explicado, o namoro engatou dias depois. No mesmo 1975, João Batista ingressou na Caixa e assumiu na agência da Praça da Sé, onde foi destacado para trabalhar na área de Habitação.

A paixão era tanta que Heliana pegou a escova de dente e foi juntar os trapos com o neo-bancário na Pauliceia desvairada.

De São Paulo veio o convite para trabalhar na matriz do banco, na secura de Brasília. Especialista em financiamentos habitacionais, ele conheceu o país inteiro ministrando cursos e treinamentos.

Na época da capital federal, uma cidade de desterrados, Tista apurou a arte de receber e cozinhar para os amigos. Sua morada brasiliense ficou célebre pelas esbórnias etílico-gastronômicas.

Atingiu o ápice funcional na Caixa laborando como assessor de diretoria.

A saudade da Mantiqueira bateu avassaladoramente e ele, no impulso, voltou para trabalhar na agência de Poços de Caldas.

Amigos, vida social intensa, sucesso na faina e uma cidade que o acolheu muito bem. Nada disso prendeu o irrequieto por mais de três anos em Poços.

Brasília chamou e novamente ele, de afogadilho, foi com a família candangar no planalto central.

Nesta segunda vez no Distrito Federal cavoucou uma forma de engordar os ganhos. Nos finais de semana aterrissava em São Paulo para comprar joias. Com o horário flexível e bom de conversa, circulava pelos ministérios e repartições mercadejando peças de ouro e diamantes para abastadas funcionárias públicas.

A falta de esquinas se tornara insuportável depois de mais uns anos no centro político da República. Os recorrentes chamados das raízes o trouxeram de novo e definitivamente à região. Como Gerente Geral andejou por Aguaí, Limeira, Vargem Grande, Casa Branca, Mogi Mirim e São João. Em 2009 conquistou o dolce far niente da aposentadoria. Dolce, tudo bem, mas fazer nada não estava nos seus propósitos.

Começou a juntar a bagagem das múltiplas gentes, culturas e lugares que conheceu. Entabulou a registrar impagáveis histórias de vida, desde e infância na 14 de Julho até a trajetória rica e nômade de bancário.

Fluiu a publicação do primeiro livro, Crenças e Desavenças, veio o segundo, Qual Será o Sabor da Crônica; está pronto, quase no forno, o terceiro, por enquanto sem título. Dono de uma pena irreverente, Tista Gregório imprime nas suas crônicas um estilo singular, mordaz. Seus escritos vêm envoltos numa irresistível embalagem de humor e pimenta, retratando o bicho homem nas suas virtudes, sucessos, pecados e fraquezas. Ora melancólico, também deleita os leitores com prazerosas e poéticas reminiscências sobre queridos e tempos idos.

Internauta compulsivo, agita o Facebook no grupo Contos Curtos, Grandes Receitas. Compartilha acepipes, crônicas, humor e cultura inútil na mesma proporção. O grupo diverte várias tribos e aguça os mais diversos paladares.

Generoso com os menos favorecidos, ele dedicas as terças-feiras para preparar uma monumental sopa. Sozinho ou com o apoio de voluntários, Tista cozinha e distribui o sopão para as famílias mais pobres do bairro Santo Antônio.

A Pousada do Bosque, um lugar histórico e esplendoroso da confreira Maria Cecília Malheiro, acolhe periodicamente jantares temáticos superconcorridos capitaneados por ele.

Ainda, sua página semanal n’O Município é um caldo sedutor de letras e aromas.

Meu amigo João Batista, nove de março deste ano caiu num sábado. Um sábado gelado de inverno em Stamford no litoral de Connecticut, na costa leste dos EUA. Estávamos num restaurante cubano e, entre drinques e pratos com toques calientes da ilha de Fidel, eu tive o arroubo de instigá-lo à candidatura a uma das cadeiras vagas desta profícua Confraria de Letrados. Embalado pelo rum de primeiríssima que você sorveu em doses nada modestas, a concordância com a postulação veio mais ou menos assim: “Manda bala, meu amigo, seja o que Deus quiser”. E, pelo jeito, Ele quis.

Eu mandei bala e seu nome teve o apoio incontestável da maioria absoluta de confrades e confreiras.

Nesta noite festiva, 10 de agosto de 2013, exatos cinco meses após aquele inesquecível almoço no Dulce Cubano, estamos aqui, juntos, em outra celebração.

Para orgulho da esposa Heliana, dos filhos Thiago, Carol, Karen e Dani, dos netos Ana Carolina, João Victor, Yuri, Yan, Yago e Alissa, dos irmãos, dos amigos e ex-colegas de trabalho, a Academia de Letras de São João da Boa Vista, irremediavelmente, a partir de hoje, mais rica, mais dinâmica, mais temperada, mais picante e mais divertida, acolhe calorosamente seu mais novo imortal.

Bem-vindo, João Batista Gregório!

sábado, 3 de agosto de 2013

Aquele abraço!

vila do zeca

Nativo deste torrão de tantos talentos, o menino crepuscular cresceu nos antiquíssimos bairros do Rosário e Pratinha.

O gosto pela arte culinária sempre existiu, mas dele nunca decorreu nenhuma pretensão profissional. Mais velho de três irmãos, Muriel Filho, ainda criança, ia às panelas para saciar sua fome e dos dois caçulas. A necessidade do primogênito, que via os pais saírem cedo na busca do sustento da prole, o fez aprender a se virar no trivial da refeição cotidiana.

Na adolescência, a proximidade com a cozinha como meio de vida aconteceu intensamente: o pai, nos anos 1990, foi proprietário de uma rotisseria na rua Getúlio Vargas, a Sabor & Cia. Entregas em domicílio e compras de ingredientes eram as atribuições dele no estabelecimento da família. À época, fissurado por rodeios, Muriel não quis saber de trocar as montarias pelo fogão.

Vinte e poucos anos e o namoro com uma garota cuja família era habitué da boa mesa foi o estímulo para ver a comida sob uma ótica mais sofisticada. Os sogros, percebendo a habilidade do genro nas caçarolas, o incitaram na exploração de aromas e temperos. A despensa bem abastecida da residência foi fundamental para o apuro nos ofícios de fazer e servir.

O sopro foi forte o suficiente para trazer aos sânjicos a Confraria Olga, um restaurante pequeno, íntimo, que atendia vinte comensais nas noites de sexta e sábado. A vocação inequívoca foi, aos poucos, perdendo os timbres amadores. Essa lapidação derivou muito de saudáveis apontamentos críticos dos clientes. Pastas frescas —com o pedigree do gênio cantineiro Carlão Cardo—, peixes e frutos do mar compunham a linha mestra da carta de prazeres da casa. E o deleite vinha na simplicidade de um fettuccine ao azeite sob generosas porções do essencial grana padano. E vinha também no requinte de um robalo grelhado no molho cítrico acompanhado de farofa de pão com trio de cogumelos.

Rupturas vieram: fim do chamego e fim do ciclo da Confraria.

Vida que segue. E seguiu no O Grotto, aconchegantemente instalado na belíssima Pousada do Bosque. Consolidado na cena gastronômica de Sanja, Muriel tocou o empreendimento por seis meses. O fechamento prematuro sucedeu do conflito do funcionamento da taberna com a agenda de eventos do local.

A carteira assinada no Spaço fluiu positivamente nas experiências gerenciais e no convívio inspirador com Dona Salma e Fábio Perez.

O labor com essa dupla tão competente no engenho do bem nutrir acabou. E rematou com a proposta de um Big empresário: Rafael Antonelli. O guaçuano supermercadista aterrissou nestas margens do Jaguari botando pra quebrar. Vultosos investimentos num mega centro de compras revitalizaram uma área degradada da cidade. E no entorno da loja os negócios pululam: banco, lotérica, café, fast-food, perfumaria, farmácia e... a Vila.

Martinho da Vila e Zeca Pagodinho são símbolos de brasilidade, de informalidade. São ícones da alma botequeira, do jeito despojado de bem receber. Sobre esse conceito, Rafael e Muriel —com o perdão da rima pobre— engendraram a Vila do Zeca, um bar que oferece croquete, pastel, polenta e cachaças de responsa. Um botequim samba-jazz ornado com mobiliário bacana e detalhes acolhedores. Uma tasca ajeitada com toques ecumênicos que tem ainda hambúrguer caseiro, bruschettas, cervejas importadas e um sanduba que simboliza à perfeição essa mescla de opções, o Sertanejo, um acepipe em que o pão francês abraça dignamente a linguiça artesanal, o queijo, o tomate e a rúcula.

E quem ama esse pé da Mantiqueira também deve se sentir abraçado. Abraçado pela capacidade realizadora de Rafael Antonelli e pelo instinto criativo do chef Muriel Filho.

Saúde!

http://www.viladozeca.com.br/

croquete