domingo, 19 de setembro de 2010

Talento crepuscular

A Folha me conta que Eduardo Bueno e Laurentino Gomes são fenômenos editoriais contando a História do Brasil. Os dois historiadores, que já venderam milhares de livros, apostam no mix dados pitorescos com análises mais profundas. Eles negam que seus livros sejam simplificação da História. Defendendo obras mais acessíveis, Laurentino Gomes diz que o viés humano do seu trabalho avaliza as investigações acadêmicas mais densas.

Cá nos torrões da Beloca, Dulcídio Braz Júnior, mestre em Física, ensina a matéria numa linha muito parecida com a dos best-sellers de História. Sabe, como poucos, converter conceitos complicados e equações impenetráveis numa linguagem inteligível, prazerosa até.

E o faz usando uma ferramenta em que ele também esbanja conhecimento: a informática.

Seu premiado blog, Física na Veia, que já teve mais de 1.300.000 acessos e está hospedado na Estação Ciência e Saúde do UOL, é referência no ensino de Física para professores de todo o território nacional. “Tópicos de Física Moderna”, é livro de sua autoria que também difunde com muita competência a matéria para estudantes Brasil afora.

Recém-chegado da Suíça, onde realizou o sonho de conhecer as instalações do CERN/LHC, Júnior, assim chamado em sala de aula, cumpriu uma promessa pré-viagem e gentilmente aceitou ser entrevistado pelo dono deste Baú. Empolgado, falou pelos cotovelos proporcionando o post mais longo da história desta tribuna:

Mire-se na figura deste néscio blogueiro e explique aos leigos os ensaios científicos realizados no CERN.

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Vista aérea de Genebra e o perfil do anel subterrâneo

Antes de mais nada, é preciso entender que o LHC –Large Hadron Collider– é um enorme acelerador de partículas (atualmente prótons) que ganham energia até atingirem 99,99% da velocidade da luz no vácuo (que é aproximadamente 300.000 km/s). Nesta rapidez enorme, as partículas carregam muita energia cinética per capta. Na prática, são dois feixes de prótons que viajam em sentidos opostos dentro do anel de praticamente 27 km de extensão que fica a 100m de profundidade e encravado na rocha. É difícil imaginar quão grande é tudo isso. Mas nessa velocidade, cada feixe dá cerca de 11000 voltas por segundo no anel de 27 km!

Em quatro sítios, onde ficam os quatro experimentos (ATLAS, CMS, ALICE e LHCb), as partículas são colocadas em rota de colisão. E o resultado desta colisão é analisado por detectores que juntos, em cada experimento, somam em média 10.000 toneladas e correspondem em tamanho a um pequeno edifício de 3 ou 4 andares.

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Esquema do anel 100m abaixo da superfície

Uma trombada a esta enorme velocidade, ou seja, com enorme energia, equivale a uma poderosa martelada que faz as partículas do átomo fragmentarem-se em subpartículas ainda menores. E aí podemos, através dos detectores que citei acima, convenientemente posicionados, estudar as entranhas da matéria. Pode-se dizer que o LHC é um poderoso microscópio para “espiar” dentro do átomo e tentar entender a sua estrutura fina.

A idéia básica por trás dos experimentos do LHC é que matéria como conhecemos está organizada segundo o Standard Model, o Modelo Padrão de Partículas, que prevê a existência de 61 subpartículas atômicas. Destas, 60 já foram detectadas. Falta apenas uma partícula para a confirmação da teoria que tenta explicar como a matéria surgiu e se organizou a partir do Big Bang, o início do nosso Universo, evoluindo até os dias de hoje. Esta peça que ainda falta no quebra-cabeças é chamada de Bóson de Higgs proposta em 1964 pelo físico escocês Peter Higgs. Segundo ele, esta partícula é responsável pelo mecanismo de prover massa às outras partículas e a si mesma. Acredita-se que quando o LHC estiver funcionando a toda carga (atualmente está a 50% a sua capacidade), o Bóson de Higgs possa aparecer para confirmar a teoria.

No CERN também estão pesquisando a razão pela qual a quantidade de matéria superou a de anti-matéria logo após o Big Bang. Hoje só temos matéria. Por que houve essa quebra de simetria? Esta é uma questão que intriga muito os cientistas até porque se houvesse quantidades iguais de matéria e anti-matéria provavelmente não estaríamos aqui. Quando matéria e anti-matéria se encontram, aniquilam-se, resultando em energia.

Existem ainda outras tantas questões fundamentais em aberto. Só para exemplificar, cito mais duas delas. Estima-se que apenas 4% do Universo seja constituído pela matéria ordinária, ou seja, a matéria da qual somos todos feitos. No restante, 22% é matéria escura e a maior fatia do bolo, 74%, energia escura. A matéria escura corresponde à massa que não “vemos” diretamente (daí o termo escura), mas cujos efeitos gravitacionais são medidos experimentalmente. O Sol, por exemplo, orbita o centro da nossa galáxia a uma velocidade de cerca de 220 km/s. Pelos cálculos, pela massa observada e estimada da Via Láctea, a velocidade orbital do Sol deveria ser em torno de 160 km/s. Mas é maior. Suspeita-se que esta velocidade (maior) decorre de uma massa extra relativa a algum tipo de matéria ainda desconhecida. Talvez esta matéria não ordinária apareça em algum experimento do LHC. Ou pelo menos pistas do que ela possa ser. E a energia escura é outro enigma cosmológico. Desde os trabalhos de Edwin Hubble, em 1929, sabemos que o Universo está em expansão. Recentemente, no entanto, descobriu-se que a taxa de expansão do Universo não é constante. A expansão está acelerada, ou seja, alguma coisa se sobrepõe à gravidade que deveria “brecar” a expansão. A energia que faz esta tarefa de aumentar a taxa de inflação do Universo tem origem desconhecida e, por isso mesmo, também é qualificada de escura. Talvez seja possível través do LHC descobrir pistas do que é e de onde vem esta energia misteriosa.

Resumindo: o CERN trabalha na fronteira do conhecimento e pesquisa assuntos de física teórica de ponta realizando o mais sofisticado experimento de todos os tempos. Eu estive lá por uns dias e posso dizer que no CERN temos a impressão de que estamos num filme de ficção científica. Mas não há nada de ficção. É ciência do mais alto nível, acontecendo ali, na nossa cara!

Conhecer in loco as instalações do CERN/LHC mudou a sua visão sobre os experimentos lá realizados?

Não posso dizer que mudou a minha visão, eu já sabia bem o que se faz por lá. Só que a gente imagina algo grandioso e, quando passa a viver lá dentro, percebe que é muito, mas muito mais mesmo!!! É tudo over!

Ali estão somados conhecimento científico e tecnologia de décadas. Só para citar um exemplo, quando fui visitar o LINAC, o acelerador primário, de onde partem os prótons que mais tarde vão entrar no anel do LHC, deparei-me com uma placa inaugural documentando a presença de Niels Bohr ali naquele local em 1960, três anos antes do meu nascimento. Vale lembrar que Bohr, que criou um modelo quântico para o átomo de hidrogênio, é um dos meus ídolos da Física Moderna! Imagina a emoção!

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Placa de inauguração do Syncrotron com a presença de N. Bohr

E não é raro nos deparamos no CERN com algum prêmio Nobel circulando nos corredores ou até quem sabe sentado ao seu lado no restaurante!

Sobre a complexidade de todo o aparato, é impressionante! São diversos experimentos interligados. No fundo o LHC é um upgrade do que já existia lá. Ele recebe os prótons de aceleradores menores, pré-existente, e termina por dar mais energia ao feixe, batendo o recorde energético na história da física até o momento.

E todo o pessoal que lá trabalha é top. E nem podia ser diferente: lá respira-se ciência da melhor qualidade o tempo todo. Até no restaurante do CERN, além de outros lugares de circulação comum, existem monitores LCD que mostram detalhes dos experimentos que estão sendo realizados em tempo real.

Voltei de lá renovado. E muito mais convicto do quanto sou apaixonado pela ciência, em especial pela Física. E quero continuar passando isso para os meus alunos presenciais e para meus leitores do Física na Veia! que são, no fundo, alunos “virtuais” (não gosto de “virtual” neste sentido mas às vezes ele é inevitável!)

Do ponto de vista prático, o que vai melhorar na vida do cidadão comum com o resultado das pesquisas no CERN/LHC?

A ciência trabalha em busca de modelos que possam explicar cada vez melhor o universo observável, em todas as escalas, do micro ao macro. E, como no CERN o conhecimento é top, é de fronteira, não dá para dizer que teremos aplicações imediatas da descoberta do Bóson de Higgs ou das pistas do que pode ser matéria escura, por exemplo.

Mas todo o esforço concentrado para fazer funcionar um experimento gigante acaba melhorando tecnologias pré-existentes e até gerando novas tecnologias que, inevitavelmente, terão reflexo nas nossas vidas de alguma forma. 

Quer exemplos?

Pouca gente sabe, mas foi lá no CERN que nasceu a internet. A quantidade de dados gerados a partir da detecção das partículas nos experimentos dos aceleradores é tão grande que precisa ser distribuída e compartilhada numa grande rede mundial. O CERN criou esta rede do zero para uso próprio. E, quando ela estava pronta, percebeu que poderia ser útil à sociedade que foi presenteada com este avanço que mudou o paradigma da troca de informação. Estamos vivendo uma nova revolução, a revolução da informação, historicamente tão importante quanto foi a revolução industrial. E isso veio do CERN, sem custo para a sociedade. Se a internet tivesse sido desenvolvida por uma empresa privada, hoje pagaríamos pelo seu uso. Pagamos apenas pelo acesso à internet. Mas a tecnologia não tem dono, é de uso comum, é presente do CERN para a humanidade.

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Dulcidio no CERN, diante da sala onde nasceu a Web

Um outro exemplo importante é que a tecnologia usada nos aceleradores de partículas, como os do CERN, ajudou a desenvolver e melhorar a qualidade dos exames diagnósticos (não invasivos) por imagem. A Medicina ganhou muito com estes avanços. Exames ultramodernos, como a PET (sigla para Tomografia por Emissão de Pósitrons), nasceram como fruto desta tecnologia aplicada. Tratamentos de tumores cancerígenos também evoluíram bastante a partir desta tecnologia.

É difícil mensurar “quanto”, “como” e “quando” um conhecimento de fronteira vai interferir nas nossas vidas. Mas isso sempre acontece.

As experiências com o LHC colocam a vida no planeta em risco? Por que existe controvérsia sobre os riscos do experimento?

Toda vez que um grande experimento aparece, surgem as teorias conspiratórias. Temos vários exemplos disso ao longo da história da humanidade. E a falta de educação científica ajuda a propagar as notícias alarmistas e a disseminar o pânico nas pessoas.

Todos podem ficar tranquilos. O mundo não vai acabar. Pelo menos não vai acabar pelas ações do CERN! Mais fácil cair um asteróide no planeta e acabar com as nossas condições de sobrevivência!

Digo isso porque o que quase ninguém comenta é que na natureza existem partículas vindas do espaço que carregam muito mais energia do que as partículas aceleradas no LHC. Algumas destas partículas, geradas em alguns processos ativos, possivelmente em núcleos de galáxias distantes, já foram detectadas aqui na Terra. Sendo assim, como é que o Universo ainda não se autodestruiu se ele mesmo produz partículas de altíssima energia?

Logo, não vai ser o LHC quem vai acabar com o mundo. Concorda?

Acho que você já poderia pensar em viver como pesquisador, conferencista e blogueiro. Você pensa em abandonar a carreira de professor? Estar em sala de aula ainda lhe dá prazer?

Esta é uma questão delicada, quase tão delicada quanto o que se faz no CERN!

Em primeiro lugar, adoro dar aulas. Pode negritar isso! O prazer é o mesmo de quando comecei a lecionar com vinte e poucos anos de idade. Afinal, falar sobre um assunto pelo qual somos apaixonados é uma delícia. E o olhar de quem entende algo antes tido como complexo é uma deliciosa recompensa!

Só que ensinar é uma via de mão dupla. Este é o melhor aspecto da minha profissão de educador. Mas, paradoxalmente, também é o pior! É o melhor quando dá certo, quando temos um aluno em sintonia, querendo aprender. Aí a troca é gratificante. No entanto, quando um aluno não está nem aí para o que você é e o que você fala, toda a energia empregada é despejada no lixo. A assimetria no processo é cruel. E a sensação de inutilidade é um ralo que nos suga por inteiro! Isso fica claro a cada vez que corrigimos provas e ratificamos o quanto somos inúteis para certas pessoas!

Num mundo de tantas opções, é fato que alguns jovens estão se perdendo. A internet, por exemplo, que é uma ferramenta maravilhosa, por outro lado traz a falsa sensação de que quando quisermos temos qualquer informação ao clique do mouse. Não é bem assim. E, mesmo que fosse, informação e conhecimento são coisas bem diferentes. Pouca gente se dá conta disso! A internet vai trazer no máximo informação. Mas o conhecimento é algo que pressupõe envolvimento, experimentação, degustação de idéias e vivências. Este processo lento, gradativo, que requer maturação, às vezes, pode ser até um pouco dolorido. Neste sentido, o papel do professor como um guia, como um facilitador, é fundamental. Mas temos muitos jovens iludidos do contrário. Naturalmente, isso nos desgasta. E confesso que tenho pouca tolerância à jovens que torram a grana da família numa escola cara, particular, enquanto seus pais ralam pesado para tentar oferecer a eles o melhor!

Então ratifico: adoro dar aulas! Só que muitas vezes, por mais que eu queira, não dou aulas porque o processo fica truncado. E disso, obviamente, não gosto nem um pouco. E, em longo prazo, cansa.

Dá para perceber o quão paradoxal e delicada é a questão? E converso muito com colegas professores de todas as disciplinas e de todo o Brasil, de escolas públicas e particulares, e com eles não é diferente. Estamos vivendo uma crise velada de valores que colocam a escola e a educação num plano inferior. E isso ainda vai explodir mais adiante, pode escrever!

Creio que naturalmente, como todo professor que acumula anos de experiência, vou mudando o foco do meu trabalho aos poucos. Entre outras coisas, é preciso abrir caminho para outros professores mais jovens, com mais gás para enfrentarem as adversidades. Mas não pretendo abandonar de vez a sala de aula porque esta é uma experiência que me alimenta, inclusive como autor de material didático.

Mas há outras maneiras de ganhar a vida, maneiras mais apropriadas para quando a idade chega. Já tenho convite de duas importantes editoras para publicar livros (uma universitária e outra internacional). Não vou revelar nomes porque ainda é segredo. Escrever e passar a sua experiência em livros é uma excelente maneira de ganhar a vida depois dos cinqüenta anos.

Aliás, em breve completo meio século de vida. E preciso começar a (re)pensar minhas estratégias de viver bem, não é mesmo? Já tenho ensaiado algumas outras maneiras de viver dentro do que adoro, dentro da ciência, e da educação. Escolhi a profissão certa! Disso não tenho dúvidas. O segredo é adequar as atividades a cada etapa da vida.

Radiação_exclusiva

Foto exclusiva no Baú: Professor Dulcídio no LINAC, onde tudo começa no LHC, onde os prótons são injetados no sistema e começam a ganhar velocidade

5 comentários:

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Ótima e oportuna iniciativa, escriba. É mais um gigante crepuscular fazendo bonito aqui e lá fora. Parabéns ao entrevistado e ao entrevistador.

Anônimo disse...

Parabéns Dulcídio Jr. fiquei feliz em ler a reportagem e saber tamanha sua inteligênicia e capacidade. Ficamos orgulhos de tem um macaúbico tão expressivo no saber físico.
Parabéns sobrinho!!

Caro Lauro parabéns pelo entrevista.

Celso Zerbetto .`.

João disse...

Lauro, essa entrevista é um grande feito, para ser preservada com muito carinho.
Forte abraço
joão

Rangel Quessa disse...

Parabéns Junior e parabéns a vc tb Lauro pelo blog e pela entrevista.

União Tvu disse...

Esse meu irmão é um orgulho pra todos nós, brasileiros. E ainda com texto do Lauro, ficou perfeito!