domingo, 2 de dezembro de 2018

Letras Sempre Vivas

Às margens do rio Paranapanema, na pequena localidade paulista de Timburi, os adolescentes passavam férias. Ela vinha de Botucatu para o aconchego da casa dos avós maternos ; ele, de Ipaussu, tinha ascendentes de pai e mãe na mesma cidade.

A paquera, o cruzar de olhares, os bilhetinhos trocados através de primos e amigos. Os encontros na Praça da Matriz. As cartas escritas com a tinta da paixão juvenil.

Hélio e Heloísa, pela distância e pelo rigor dos costumes da época, só oficializaram o namoro depois de cinco anos de flertes e de declarações via Correios.

O casamento foi em 1982, na Botucatu da noiva de sangue suíço, Heloísa Ambiel Pires. Ela, filha de um comerciante que tinha distribuidoras de periódicos em várias cidades de São Paulo, ajudava o pai na gestão do negócio. Hélio Gatti Martins, nos primeiros anos de vida conjugal, trabalhou em Bauru, na estatal de energia CESP. 

A Agência Pires de Jornais e Revistas, na Dona Gertrudes dos Crepúsculos, estava também no rol de empreendimentos do senhor José Camargo Pires.

Pais de Ana Luísa, então com dois anos, Hélio e Heloísa aterrissaram em São João da Boa Vista em 1986 para assumir o negócio de jornais e revistas da família, que estava arrendado.

A prole cresceu: Clarissa e Elisa nasceram nesta abençoada aldeia oxigenada pela brisa da Mantiqueira

Bonança também na empresa. O suor recompensa.
A banca foi modernizada, a distribuição prosperou, os livros se juntaram aos jornais. O nome forte Letra Viva saiu de um concurso entre os sanjoanenses. Em 1996, o lendário Bar Canecão sucumbiu, e a Letra Viva passou a ocupar a esquina mais nobre do comércio macaúbico.

Nessa trajetória de 32 anos letrando a nação crepuscular, a Letra Viva testemunhou gerações legando boa literatura aos mais novos. Aqueles jovens que começaram a frequentar a livraria no fim dos anos 1980, voltaram à loja tempos depois, com seus filhos, para juntos sentirem os prazeres do manuseio, do passeio entre as estantes, do cheiro de tinta no papel, da compra do bom e velho livro.

Semanas atrás, Hélio e Heloísa comunicaram à província o encerramento das atividades da Letra Viva. As redes instantaneamente foram inundadas por lamentos sinceros pelo fechamento do estabelecimento que já está gravado na memória afetiva de São João da Boa Vista.

Sobre esse fim de ciclo, reproduzo as palavras de Heloísa, colhidas hoje cedo na sua casa, entre xícaras de café e o som da chuva:

“Fecho a livraria sem nenhum sentimento negativo. São João muito nos deu e, modestamente, tentamos retribuir à cidade estes bons sentimentos. A dinâmica do varejo tem mudado muito rápido nos últimos anos. Sempre fui antenada para não perder o bonde do mundo empresarial. Ultimamente, a idade tem pesado e acho que estou começando a perder a capacidade de me atualizar na velocidade do mundo de hoje. Ao contrário do que muitos pensam, a Letra Viva teve como clientela maior as classes B e C. Jovens de escolas públicas, sim, frequentavam a livraria e compravam livros. Mais do que a maioria imagina. Essa relação da Letra Viva com o público infantil e juvenil é o vínculo do qual mais me orgulho, e é disso que mais vou sentir saudade”. 

Antes de finalizar minha modesta deferência ao casal Letra Viva, quero dar um toque mais pessoal ao tributo. Moramos, nós e eles, nas cercanias do circuito Tereziano Valim-Gabriel Ferreira-Dom Pedro II. Mais do que essa vizinhança, temos, eu e Josi, um filho comum com os homenageados: Andreas Lemmer, um intercambista alemão, morou em nossos lares nos idos de 2003/2004. Pelo convívio e pela proximidade, atesto o quão íntegros, discretos, devotados aos seus e ao labor eles genuinamente são.


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