sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O Leão Vermelho

gastronomia

A descoberta

Lendo a coluna da Alexandra Forbes, no caderno Comida da Folha, em dezembro de 2012, me deparo com isso:

“Restaurantes-miniatura oferecem algo mais valioso do que um menu bem-feito: a experiência de ser alimentado diretamente e intimamente por um cozinheiro interessante. Não são exclusividade parisiense. Vejo-os pipocando tanto em Nova York —Blanca, no Brooklyn— como em São João da Boa Vista, SP —onde Gabriel Vidolin, ex-estagiário do El Bulli, cozinha para quatro pessoas por noite em seu O Leão Vermelho. O fato de servirem poucos só aumenta o charme: nada como uma reserva difícil de conseguir para estimular a curiosidade de um gourmet…”

Decepção

Comida e Sanja, não necessariamente nessa ordem, atiçam vário instintos no autor destas mal-traçadas. Numa “googlada” achei o site e enviei mensagem ao chef pedindo um bate-papo pra conhecer esse inusitado restaurante. Uma assessora de imprensa, cujo nome afrancesado saiu da minha memória, respondeu-me via e-mail arrolando algumas excentricidades para que a entrevista acontecesse. A mais estapafúrdia —e aviltante— era submeter meu texto, antes de qualquer postagem ou publicação, à aprovação deles. É óbvio que, por isso, o colóquio não rolou naquele findar de 2012.

Mimo

Dia destes, um casal amigo, exilado nos EUA, investiu algumas verdinhas naqueles sofisticados condomínios mantiqueiros. Estava vigente a promoção: “Compre um lote e ganhe um jantar”. Este esfarrapado escriba e sua consorte foram mimoseados com os convites para repastar n’O Leão Vermelho. Presente a gente não recusa, agradece. Thank you, friends!

A chegada

20:20, último sábado, estaciono meu carro num trecho residencial da rua Getúlio Vargas. A alameda deserta fica mais lúgubre com a densa arborização que mitiga os raios da iluminação pública. Dois outros veículos já estão no pedaço. Ninguém se arrisca antes da hora marcada. 20:30, eu puxo a fila e cruzo o gradil vermelho. A testada é pequena e um jardim de poucos metros separa a calçada da porta. Um sininho à esquerda da entrada funciona como campainha. Meio encabulado, badalo o negocinho umas três vezes. Gabriel, muito gentil, nos dá as boas-vindas. Enquanto lamenta a ausência da sommelier, “Carolina precisou viajar às pressas para Montevidéu e não estará conosco nesta noite”, ele nos conduz à biblioteca. Entre livros, a maioria de gastronomia, somos aboletados numa mesa para quatro pessoas. Os dois outros casais que entraram logo atrás são acomodados em ambientes distintos. A casa é antiga, simples, a decoração prima pela sobriedade sem nenhum traço de rebuscamento. Várias peças da mobília foram concebidas pelo chef.

O confisco

“Não permitimos o uso de celulares n’O Leão”, decreta Gabriel antes de aprisionar meu gadget numa caixinha de madeira. A experiência ali implica na renúncia compulsória e momentânea à vida digital.

A brigada

Vidolin só tem o auxílio de uma pessoa na arte de cozinhar e servir: Felipe, um chef aprendiz made in Belém do Pará. O serviço é polido e corretíssimo.

A sequência

Não há possibilidade de escolhas. A definição do menu, cujos pratos são apresentados de forma impecável, é prerrogativa exclusiva da casa. A sucessão degustativa foi assim, salvo lapsos de memória: um frisante de Bento Gonçalves anima o paladar para um pão saindo do forno, de massa muito leve, acompanhado de manteiga caseira. Ricota fica bem com os parceiros, pepino, menta e biscuit de casca de laranja, e também tem a companhia do borbulhante gaúcho. Um mix de pastas in brodo —uma espécie de sopa— enriquecido com linguiça defumada e abobrinha. Tilápia grelhada salpicada com amêndoas, sementes de abóbora e gerânio. Estes pratos são harmonizados com um riesling chileno. O tinto, também do Chile, escolta o protagonista: lombo bovino —muito similar ao boeuf bourguignon— com purê de grão de bico e batata assada. Sobremesas: coalhada frozen com abacaxi assado e sorvete de amendoim chuviscado com raspas de chocolate. Os chamados digestivos vêm em dose tripla: chá frutado, licor Frangelico —feito de nozes moídas, misturadas com cacau e baunilha— e licor de framboesa. A água Fonte Platina, gasosa ou não, fica ali, sempre à mão, para um hidratante e protocolar intervalo entre os vinhos.

O chef

Gabriel Vidolin, 25 anos, formado no SENAC de Águas de São Pedro, já estagiou e trabalhou em restaurantes estrelados no Brasil e no mundo —El Bulli é o mais famoso, mas é do Mugaritz, no País Basco, que ele mais gosta. Sua cozinha é rotulada como autoral ao extremo. Ele é um artista no seu métier e como tal tem as suas idiossincrasias. Ele enxerga tons rubros no Leão e, talentoso e inventivo como poucos, não seria surpresa se o felino surgisse tingido de verde-limão. Ele é excepcional. Ele pode.

5 comentários:

Bila Barbosa disse...

Muito bom Lauro Augusto Bittencourt Borges, adorei seu texto.

Leila Reis disse...

Parabéns pelo texto, Lauro! Ainda mais acompanhado de boa refeição!!!!!!!
Abraços.

Anônimo disse...

Lauro, escreve com maestria. Parabéns pelo texto.

Fininho disse...

Lauro consegue traduzir com a maestria de poucos, o que lhe é apresentado em forma de boa mesa!
A riqueza dos detalhes e a sutilidade em cada comentário, deixa entendível e se faz passar por normal toda a loucura de quem pode fazer o que bem entender na cozinha !!
Parabéns amigo !

Helio Gatti disse...

Parabéns pelo comentário do Leão Vermelho. Tinha muita curiosidade e através de suas observações pude fazer uma boa idéia do local.(mas não tenho cacife para tamanho investimento).
Abraços.