sábado, 4 de abril de 2020

Lamúria


O vírus à espreita nos espirros dos seres mais insuspeitos. Não, não há mais insuspeitos numa época de pandemia. Senhoras nas janelas amedrontadas com o que está além do portão. Ruas desoladas. O tráfego diminuto remete a tempos idos. Pessoas não flanam mais. As poucas que andam nas calçadas o fazem por necessidade imediata e específica. Visitam o mercado ou a farmácia e se recolhem novamente. Suas casas viraram bunkers antivirais. O convívio doméstico se mistura com uma nova forma de trabalhar. A mesa de jantar divide sua prazerosa finalidade com documentos e computadores. Varandas e quintais são o máximo possível de lufadas de ar. Usar a voz ao telefone voltou à moda. As motos de delivery entregam o que retirávamos nos balcões. É preciso ouvir, ao menos, quem víamos com frequência. Esteiras e bicicletas ergométricas foram reavivadas para cumprirem sua missão fundamental. Netflix e livros nos salvam do tédio. Escrever espanta nossas angústias. A música alivia nossa tristeza. Fanáticos gritando mentiras e insanidades escancaram nossa mediocridade como espécie. Dizer “estamos perdidos” nunca foi tão literal. 

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