sábado, 17 de maio de 2025

Meia memórias, meia mozzarella


Vinte e oito de fevereiro de 1986. Pela TV, acompanhávamos o presidente Sarney anunciando o Plano Cruzado, que teria o condão de salvar o Brasil da hiperinflação. Naquela mesma data, três jornalistas —Francisco Arten, Gilberto Pirajá e Edelson Decanine— inauguravam um negócio que teria o condão de incluir São João num universo que a cidade desconhecia. Chico Arten lembra que o trio comprou o ponto num rompante de fim de noite —e que só no dia seguinte a ficha caiu. O plano econômico não deu muito certo. Já o plano napolitano…


Adolescente em São João, em meados da década de 1980, tinha um programa sagrado nas noites de sexta: o rodízio de pizzas da Tarantella. O porão na baixada da Rua São João abrigava uma das pizzarias mais frequentadas da história da província. A Tarantella marcou época pela qualidade das redondas, pela massa fina, pelo pioneirismo no rodízio e pelo inusitado subsolo aconchegante onde foi instalada.


A molecada travava lá uma disputa insana: quem comia mais pedaços. Doze foi o máximo que o autor destas linhas conseguiu. Um hoje respeitável pai de família —então meu amigo à época— cravou dezoito pedaços e algumas Coca-Colas numa noitada antológica em 1986. Zé Luis Arten, que esteve na casa desde a abertura —primeiro gerenciando e depois, com a saída dos dois outros parceiros, se associando ao irmão Chico— conta que um cliente de Águas da Prata foi o recordista: em algumas horas, ele devorou incríveis trinta e oito pedaços, quase cinco pizzas inteiras. O fenomenal glutão ainda teve a pachorra de finalizar a epopeia com uma taça colegial.


A Tarantella, nalgum momento, virou apenas memória crepuscular, mas suas pizzas nunca morreram. Por mais de 1/4 de século, Zé Arten e a mulher, Shalimar Brandão, as mantiveram no cardápio do Restaurante da Esportiva. Aliás, é notável o sucesso que eles conquistaram no clube, fosse com as famosas redondas ou com os pratos à la carte.


Numa dessas peças do destino, Zé e Shalimar foram “convidados” a abandonar o Restaurante da Esportiva, deixando uma legião de clientes e sócios tão tristes quanto famintos.


Se há freguesia carente e time que sabe trabalhar, portas sempre se reabrem. Neste maio de 2025, a marca Tarantella renasceu. A Praça da Bandeira é testemunha deste recomeço que congrega uma mistura de pizzas afetivas, belos filés, tradição e gente que arregaça as mangas e faz acontecer —agora com o reforço da dupla Charleston e Fabiana Gomes, que chega somando talento, experiência comercial e entusiasmo à empreitada.

terça-feira, 6 de maio de 2025

O mel que escorre na Serra

Saímos de casa numa manhã esplendorosa de outono para conhecer uma história sendo contada em meio à natureza da Serra da Paulista. O céu tinha um azul profundo, em harmonia com o verde das encostas —uma cena que convida à contemplação.

Acolhidos sob o canto dos pássaros e a sombra das árvores, fomos guiados por Felipe Meireles, carioca de origem, mas com raízes hoje bem fincadas na Serra. É ele quem criou e conduz o Apiário Oásis, um refúgio doce onde ciência, biodiversidade e afeto se encontram.

Felipe tem 37 anos, é botânico, sommelier do produto do néctar das abelhas e uma das principais referências no Brasil quando se fala de mel como expressão gustativa, ecológica e cultural. Criador da primeira roda sensorial voltada às abelhas corbiculadas e idealizador do primeiro curso de sommelier de mel do país, atuou por anos no setor público com foco na polinização. Seu trabalho une ciência, conservação e gastronomia —sempre com atenção à biodiversidade e aos sabores que a terra oferece.

Provamos, eu e Josi, onze tipos de meles: de café, angico, cipó-uva, jataí, uruçu, aroeira, silvestre picante, borá, caju, mandaçaia… cada um com seu sabor, sua memória, suas notas e retrogostos.

Desde 2020, Felipe mora na Serra da Paulista com a esposa, Lígia —natural de Vargem Grande do Sul— e os filhos, Antonio e Pedro. Vieram em busca de sossego, mas encontraram mais: compraram a gleba com quase nenhuma benfeitoria e, com investimento e paixão, a transformaram num lugar fértil, vivo e bem cuidado. Ali crescem mais de 900 espécies frutíferas, e até os peixes do tanque são alimentados com frutas —tudo integrado a um ecossistema construído com consciência e sustentabilidade.

Na mesma propriedade funciona a Hospedaria Oásis, espaço que recebe turistas, chefs em processo criativo e amantes da gastronomia. São duas casas equipadas, com internet e conforto, onde os hóspedes vivenciam experiências exclusivas com raridades do apiário, frutas incomuns (como o  incrível Fruto do Milagre, que torna tudo doce como mel) e os saberes que Felipe cultiva com entusiasmo e compartilha com generosidade.

Ao fim da visita, perguntei se ele não sentia falta da cidade. Felipe sorriu, convicto de que já encontrou o que procurava:
— Nunca mais quero sair da Serra.

[Visitas ao Apiário Oásis podem ser agendadas pelo WhatsApp: (19) 98399-9448]

Sabores patagônicos

 

No avião, entre Santiago e Punta Arenas, a gastronomia da viagem começou bem ruim. Ainda bem que o chão firme da Patagônia e seus sabores redimiram o desastre culinário do voo.


Cebolitos e pipoca doce

Rumo ao extremo sul das Américas, a comissária da Latam me desperta às 5 da madrugada para o desjejum. Sonolento, ouvi daquele espanhol metralhado dela que as opções de refeição seriam um pequeno suflê de cabrita e um bolo de caramelo. Vibrei com a excêntrica oferta culinária. Minha fome patagônica e minha curiosidade por um café da manhã típico obrigaram-me a pedir os dois. Que tristeza! Que vontade de pular do avião quando recebi os pacotinhos com oito gramas de cebolitos e dez de pipoca doce. Desde os 7 x 1 eu não me sentia tão impiedosamente derrotado. Josi, ao lado, cometia sua primeira gargalhada do dia, ainda nos céus da Patagônia.


Empanadas da Chacrita de Nimez

Voltando do indescritível Perito Moreno, peço ao ChatGPT que me indique a melhor empanada de El Calafate. Esperava, confesso, alguns lugarzinhos da moda na Avenida del Libertador. Ficamos, eu e Josi, ressabiados diante daquele estabelecimento perdido num trecho ermo defronte ao lago Nimez. Ainda assim, a curiosidade venceu a desconfiança. Um jovem casal nórdico, com seus dois filhos, era a única presença naquele ambiente um tanto psicodélico. Gostei do que vi —e do que ouvi: uma playlist roqueira, anos 80 e 90, daquelas que merecem respeito. As empanadas —de carne, cordeiro, cebola com queijo— eram argentinamente fantásticas. E o ChatGPT, veja só, afinadíssimo com meu gosto meio underground. Nem precisava do jarrão de cerveja artesanal ou da panqueca com doce de leite. Eu viveria das empanadas da Chacrita de Nimez.


Trattoria Maffia e o ravioli de cordeiro

Tão célebre quanto o cordeiro patagônico em si, são as massas recheadas com sua carne —especialmente raviolis e sorrentinos. Não poderia deixar El Chaltén sem provar essa pasta estufada com o sabor icônico do extremo sul das Américas. A escolhida foi a Trattoria Maffia: madeira em profusão, poucas mesas, uma bela carta de vinhos, uma dona antipática, garçonetes gentis e um ravioli de cordeiro do tamanho do Fitz Roy.


Parrillada

Em Santiago, a mesa se põe com sotaque tradicional chileno: pratos clássicos, frutos do mar frescos e, quase sempre, um toque do vizinho Peru, cuja gastronomia conquistou espaço cativo por ali. Já no sul, na vastidão fria da Patagônia, além dos frutos do mar nas cidades litorâneas, o cheiro de churrasco é sentido nas esquinas. Talvez pela vizinhança com a Argentina, abundam restaurantes que servem carne na parrilla. Cortes tão generosos quanto as brasas.


Cordeiro patagônico

O cordeiro patagônico é mais do que um prato: é quase um rito. Assado lentamente ao estilo tradicional, em cruzes de ferro inclinadas diante da brasa, ele resume bem a rusticidade elegante da região —carne macia, sabor profundo, gordura na medida. Em praticamente todos os cantinhos da Patagônia ele aparece com destaque nos cardápios, do restaurante mais turístico ao parrillero mais raiz. E, em geral, não decepciona.

O melhor que comemos na viagem —e olha que experimentamos alguns bons— foi no restaurante Mi Viejo, em El Calafate. A carne veio no ponto exato, úmida, dourada por fora, com aquele gostinho de defumado que só o fogo lento consegue dar. Acompanhado de um vinho tinto e do frio que não dá trégua, foi daqueles jantares que a memória guarda com carinho e um tantinho de saudade.

Na Patagônia, o cordeiro não é só uma refeição, é também ícone da cultura local. E, no Mi Viejo, virou também um capítulo especial do nosso roteiro.